RESUMO |
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O sábado nos primeiros 200 anos de cristianismo1
Por que estudar sobre o sábado nos primeiros 200 anos de cristianismo? A resposta é simples: é que muitos cristãos são facilmente enganados por seitas e narrativas históricas falsas sobre o cristianismo. Isso acontece porque, com frequência, desconhecem a História da Igreja.
Estudar a História da Igreja pode lançar muita luz sobre práticas cristãs, corrigir teorias, crenças e costumes errôneos e ajudar a entender bastante como era o culto das igrejas cristãs nos dois primeiros séculos. Aliás, logo abaixo você lerá o texto em que Justino Mártir, um dos primeiros pais da igreja e o primeiro apologista cristão, descreveu um culto cristão típico.
O erro de história de Ellen White
Uma dessas narrativas históricas falsas é encontrada no livro O grande conflito. Ali a Ellen White ensinou que:
“Nos primeiros séculos o verdadeiro sábado havia sido guardado por todos os cristãos. Eles eram ciosos da honra de Deus e, crendo que a lei divina era imutável, guardaram zelosamente a santidade dos preceitos da lei.”2
Repare no que a Ellen escreveu:
- O sábado foi guardado por todos os cristãos nos primeiros séculos. Não foi por alguns nem pela maioria, foi por todos.
- A expressão “nos primeiros séculos” ensina que a guarda do sábado continuou durante pelo menos dois séculos ou, mais provavelmente, durante pelo menos três séculos, ou seja, até o ano 300.
Hoje sabemos que a Ellen estava errada sobre o assunto. E temos disso certeza porque, conforme você descobrirá, é o que revela o estudo dos primeiros 200 anos de cristianismo.
Quem são os pais da igreja?
Mais acima chamamos Justino Mártir de pai da igreja. Afinal, o que significa essa expressão?
Os protestantes/evangélicos chamam de pais da igreja (e os católicos, de “padres da igreja”) aqueles grandes líderes cristãos que viveram nos primeiros séculos depois de Cristo e deixaram escritos importantes: estudos teológicos, textos apologéticos, cartas, sermões, etc. Esses escritos nos mostram, entre outras coisas:
- o que a igreja daquela época pensava;
- como ela funcionava;
- como os cristãos viviam.
E os outros textos cristãos?
E, além dos pais da igreja, há textos cristãos escritos naquela época mas de autoria desconhecida. Embora não saibamos quem foram seus autores, esses outros textos também nos ajudam a entender melhor o pensamento e a prática dos cristãos daquele período.
Os textos relevantes dos dois primeiros séculos
Pesquisei todos os textos que tratam da guarda do sábado e que foram escritos até o ano 200. Para facilitar a leitura e compreensão, procurei colocar os textos abaixo em ordem cronológica, dos mais antigos para os mais recentes. As datas de composição são aproximadas.
Epístola de Barnabé (escrito entre 70 e 132 A.D.)
A Epístola de Barnabé é um texto cristão antiquíssimo, escrito entre os anos 70 e 132 da era cristã. Ou seja, escrito talvez até antes de alguns livros do Novo Testamento, como, por exemplo, o Livro de Apocalipse.
Mas como saber podemos saber que essa epístola foi mesmo escrita entre os anos 70 e 132? A resposta é simples. É que Barnabé 16.3-4 menciona uma futura reconstrução do templo. Isso indica que a epístola foi escrita depois do templo ter destruído pelo general Tito no ano 70 e antes de 132, quando aconteceu a revolta de Bar Kochba, quando acabou de vez o sonho judaico da reconstrução do templo. A conclusão lógica, aceita por todos os estudiosos, é que a Epístola de Barnabé foi escrita entre 70 e 132.
A Epístola de Barnabé certamente não tem a autoridade da Bíblia para determinar aquilo em que os cristãos devem crer, mas tem grande valor histórico, pois mostra crenças e práticas de cristãos da igreja primitiva!
E olhe só o que está escrito ali na Epístola de Barnabé:
“Eis por que celebramos como festa alegre o oitavo dia, no qual Jesus ressuscitou dos mortos e, depois de se manifestar, subiu aos céus.”3
Repare num detalhe muito importante: a Epístola de Barnabé simplesmente comenta que os cristãos se reuniam no domingo. Esse fato é apresentado como algo bem normal e natural, nada de especial. É impossível negar que já era uma prática bem mais antiga do que a data da composição da epístola.
Didaqué (80 a 90 A.D.)
Estudiosos atribuem à Didaqué uma data ainda no primeiro século da era cristã: entre os anos 80 e 90. A Didaqué, também conhecida pelo título Instrução dos doze apóstolos, é um texto relativamente curto. Ali encontramos a seguinte orientação:
“Reúnam-se no dia do Senhor para partir o pão e agradecer, depois de ter confessado os pecados, para que o sacrifício de vocês seja puro”.4
Essa é uma antiquíssima menção ao “dia do Senhor”. A instrução era para os cristãos se reunirem nesse dia com o objetivo de partir o pão. Adventistas dizem que é referência ao sábado; a maioria dos cristãos diz que o texto está falando do domingo.
Embora não seja possível afirmar com segurança, um exame da expressão neotestamentária “partir o pão” favorece que a Didaqué esteja falando do domingo. Acompanhe meu raciocínio:
- No Novo Testamento “partir o pão” em uma reunião da igreja significa celebrar a ceia do Senhor (ou Santa Ceia, ou Eucaristia). Veja, por exemplo, Lucas 22.19; 1Coríntios 10.16-17; 1Coríntios 11.23-24.
- Em Atos 20.7 os cristãos se reúnem no domingo com o objetivo específico de “partir o pão”: “No primeiro dia da semana, estando nós reunidos com o fim de partir o pão, Paulo, que devia seguir viagem no dia imediato, exortava-os e prolongou o discurso até à meia-noite.”. Eles aproveitaram a ocasião para se despedir do apóstolo Paulo, mas o motivo da reunião foi partir o pão, isto é, celebrar a ceia.
- Parece, portanto, que a Didaqué está indicando o costume dos cristãos de se reunirem no domingo para cultuar e partir o pão.
Epístola aos Magnésios (por Inácio de Antioquia; 110 A.D.)
Inácio foi bispo, isto é, o principal líder, da igreja existente na cidade de Antioquia, capital da província romana da Síria. Da antiga Antioquia, hoje restam ruínas no município de Antakya, na Turquia, quase fronteira com a Síria.
Sabe-se que Inácio nasceu no ano 35 e morreu martirizado por volta do ano 117. A tradição indica que ele foi discípulo dos apóstolos Pedro, João e Paulo e sucessor de Pedro como bispo de Antioquia. O que quero destacar aqui é a carta que ele escreveu para os cristãos da cidade de Magnésia.
Magnésia era uma cidade da Anatólia e ficava a poucos quilômetros da nossa conhecida Éfeso. No ano de 110, uma data admitida por Samueli Bacchiocchi,5 que é um dos mais importantes historiadores adventistas, o pai apostólico Inácio escreveu uma carta aos cristãos de Magnésia. Entre outras coisas, ele disse:
“Aqueles que viviam na antiga ordem de coisas chegaram à nova esperança, e não observam mais o sábado, mas o dia do Senhor, em que a nossa vida se levantou por meio dele e da sua morte.”6
Inácio deixa claras duas coisas:
- em sua época os cristãos já não guardavam o sábado;
- fazia algum tempo que o domingo já era chamado de “dia do Senhor”.
Evangelho de Pedro (110 A.D.)
Escrito possivelmente no início do século segundo,7 o Evangelho de Pedro foi rejeitado pela igreja na hora de decidir quais textos fariam parte da lista de livros aprovados e oficiais do cristianismo, isto é, os livros do Novo Testamento.
“Ora, Maria Madalena, uma discípula do Senhor, tinha ficado com medo dos judeus, pois estes estavam ardendo de ira, e, por esse motivo, ela não havia feito no túmulo do Senhor as coisas que as mulheres costumam fazer pelos entes queridos que morrem. Mas bem cedo no dia do Senhor ela chamou algumas amigas e foi com elas ao túmulo onde ele havia sido sepultado.”8
Embora os cristãos não aceitem esse texto como inspirado, de qualquer maneira ele mostra que, na época em que foi escrito, as pessoas já estavam chamando o domingo de “dia do Senhor”.
Primeira apologia (por Justino Mártir; 155 A.D)
Justino Mártir, nascido por volta do ano 100 e falecido em aproximadamente 165, foi um apologista e filósofo cristão. Como seu nome diz, foi martirizado por causa de sua fé cristã. Das suas obras, temos interesse direto em duas: Primeira apologia e Diálogo com Trifão.
No livro Primeira apologia Justino escreve ao imperador romano Antonino Pio para protestar contra cristãos estarem sendo perseguidos pelo simples fato de serem cristãos e apresenta ao imperador uma defesa do cristianismo e explica as práticas dos cristãos. A obra foi escrita por volta do ano 155.
“No dia que se chama do sol, celebra-se uma reunião de todos os que moram nas cidades ou nos campos, e aí se leem … as memórias dos apóstolos ou os escritos dos profetas. Quando o leitor termina, o presidente faz uma exortação e convite para imitarmos esses belos exemplos. Em seguida, levantamo-nos todos juntos e elevamos nossas preces. Depois de terminadas [as orações], … oferece-se pão, vinho e água, e o presidente, conforme suas forças, faz igualmente subir a Deus suas preces e ações de graças e todo o povo exclama, dizendo: ‘Amém’. Vem depois a distribuição e participação feita a cada um dos alimentos consagrados pela ação de graças e seu envio aos ausentes pelos diáconos. Os que possuem alguma coisa e queiram, cada um conforme sua livre vontade, dá o que bem lhe parece, e o que foi recolhido se entrega ao presidente. Ele o distribui a órfãos e viúvas, aos que por necessidade ou outra causa estão necessitados, aos que estão nas prisões, aos forasteiros de passagem, numa palavra, ele se torna o provisor de todos os que se encontram em necessidade. Celebramos essa reunião geral no dia do sol, porque foi … o dia em que Jesus Cristo, nosso Salvador, ressuscitou dos mortos. Com efeito, sabe-se que o crucificaram um dia antes do dia de Saturno e no dia seguinte ao de Saturno, que é o dia do Sol, ele apareceu a seus apóstolos e discípulos, e nos ensinou essas mesmas doutrinas que estamos expondo para vosso exame”.9
Esse é um trecho inspirativo sobre como eram os cultos no início do cristianismo:
- Cristãos de cidades grandes e pequenas se reuniam em um lugar para o culto público;
- O culto tinha:
- Leitura “das memórias dos apóstolos ou dos escritos dos profetas“, isto é, da Bíblia (tanto Velho como Novo Testamento).
- Pregação pelo pastor, que Justino chama de “presidente” para facilitar o entendimento pelo imperador. A pregação consistia na explicação do que foi lido e no desafio aos crentes a viverem de acordo com as Escrituras (“imitação dessas coisas“).
- Orações feitas em pé.
- Celebração da ceia do Senhor: “oferece-se pão, vinho e água”. Naquela época era costume misturar água no vinho, por isso, o uso da palavra “água”.
- Levantamento de ofertas voluntárias para ajudar pessoas de alguma forma necessitadas: órfãos, viúvas, carentes, presos, forasteiros. Não era dízimo.
- O culto acontecia no dia do sol, isto é, nos domingos. Justino não usa a expressão “dia do Senhor” por uma simples razão: o imperador não iria entender. É que, no começo, só os cristãos chamavam o primeiro dia da semana de “dia do Senhor”. Esse dia foi escolhido “porque foi o dia em que Jesus Cristo ressuscitou dos mortos“.
- Eles não se reuniam aos domingos porque eram pagãos, nem porque odiavam o sábado, nem porque haviam sido enganados pelo catolicismo. Também não foi por causa do “decreto dominical” emitido por Constantino, pois esse decreto só surgiria mais de 160 anos depois, em 321 A.D. O verdadeiro motivo é que Jesus Cristo havia ressuscitado nesse dia.
Diálogo com Trifão (160 A.D.)
Escrito pouco depois da Primeira apologia, o Diálogo com Trifão apresenta o debate entre o judeu Trifão e o cristão Justino.
“A Lei dada sobre o monte Horeb [isto é, monte Sinai] já está velha e pertence apenas a vós [judeus]. A outra, porém, pertence a todos. Uma lei colocada contra outra lei anula a primeira; uma aliança feita posteriormente também deixa sem efeito a primeira. Cristo nos foi dado como lei eterna e definitiva e como aliança fiel, depois da qual não há mais nem lei, nem ordem, nem mandamento.” (Diálogo com Trifão 11.2)10
“… A nova lei quer que guardeis o sábado continuamente, e vós, que passais um dia sem fazer nada, já vos considerais religiosos, sem saber o motivo por que vos foi ordenado o sábado.” (Diálogo com Trifão 12.3)
“Sem o sábado, também agradaram a Deus todos os justos [desde Adão] … até Moisés.” (Diálogo com Trifão 19.5)
“Se … antes de Moisés não havia necessidade do sábado, das festas ou dos sacrifícios, também agora ela não existe, depois de Jesus Cristo, Filho de Deus, nascido sem pecado de Maria Virgem, da descendência de Abraão.” (Diálogo com Trifão 23.4)
“Trifão, aqueles de vossa raça que dizem crer em Cristo, mas a todo custo pretendem obrigar aqueles de todas as nações que acreditaram nele a viver conforme a lei de Moisés, ou que não se decidem a conviver com estes, também eu não aceito esses como cristãos. Todavia, aqueles que foram persuadidos por estes a viver conforme a lei, suponho que talvez se salvem, contanto que conservem a fé no Cristo de Deus.” (Diálogo com Trifão 47.3-4)
Justino ensina que:
- A Lei do Velho Testamento dizia respeito apenas aos judeus.
- O cristão deve guardar o sábado todos os dias, isto é, descansar constantemente em Cristo (Hebreus 4.11-12).
- Uma nova lei anula a primeira. Hebreus 7.12 diz que, com Cristo, houve mudança de lei.
- Uma nova aliança deixa sem efeito a primeira, ou seja, a velha aliança mosaica foi invalidada.
- Cristo é a lei eterna e definitiva e a aliança fiel; em outras palavras, Cristo não trouxe a lei eterna e definitiva e a aliança fiel; ele é essas duas coisas!
- Não houve sábado antes de Moisés, mas, assim mesmo, todos os justos antes de Moisés agradaram a Deus.
- Se antes de Moisés não havia necessidade de sábado, logo, depois de Moisés também não há.
- Não se deve aceitar como cristãos aqueles que dizem crer em Cristo, mas a todo custo querem obrigar pessoas todos que acreditam nele a viver conforme a lei de Moisés!
Contra Celso (por Orígenes; 170 A.D.)
“Se alguém fizer objeção a respeito, dizendo que nós próprios estamos acostumados a observar certos dias, como por exemplo o dia do Senhor, a Preparação, a Páscoa, ou Pentecostes, tenho de responder que, para o cristão perfeito — aquele que em seus pensamentos, palavras e ações está sempre servindo a seu Senhor natural, Deus o Verbo — todos os seus dias são dias do Senhor e que está sempre guardando o dia do Senhor.“11
Essa é uma citação de Contra Celso, uma obra em que o cristão Orígenes defende a fé cristã de várias críticas feitas por um certo Celso. Repare que, na explicação de Orígenes, os cristãos não guardam determinado dia, mas para eles “todos os seus dias são dias do Senhor”. Em outras palavras, fica óbvio que os cristãos não guardavam nem o sábado nem o domingo, embora, conforme lemos em outros escritos, eles se reunissem no primeiro dia da semana.
Apologia a Autólico (por Teófilo de Antioquia; 180 A.D.)
Teófilo, bispo de Antioquia, escreveu a Autólico, um amigo pagão, uma defesa da fé cristã:
“E aprendemos uma lei santa, mas temos como legislador o verdadeiro Deus, que nos ensina a agir justa, religiosa e santamente. Sobre a religião e a piedade ele diz: ‘Não terás deuses estranhos além de mim. Não fabricarás para ti imagem alguma de tudo o que há acima no céu, nem abaixo na terra, nem nas águas debaixo da terra. Não os adorarás, nem os servirás, porque eu sou o Senhor teu Deus’.
“Sobre o agir santamente ele diz: ‘Honra teu pai e tua mãe, para que tudo te corra bem e tenhas longa vida sobre a terra que eu te dou, eu o Senhor Deus’. E sobre a justiça: ‘Não cometerás adultério. Não matarás. Não roubarás. Não levantarás falso testemunho contra o teu próximo. Não cobiçarás a mulher do teu próximo, nem a sua casa, nem o seu campo, nem o seu escravo, nem a sua escrava, nem o seu boi, nem o seu jumento, nem qualquer animal seu, nem qualquer coisa que pertença ao teu próximo. Não distorcerás o julgamento ao julgar o pobre. Tu te afastarás de toda palavra injusta. Não matarás o inocente e justo. Não absolverás o ímpio, nem aceitarás suborno, pois o suborno cega os olhos dos que veem e destroem as palavras justas’.”12
Repare que Teófilo:
- menciona os Dez Mandamentos, mas omite o mandamento sobre o sábado; e
- coloca vários mandamentos da lei mosaica em pé de igualdade com os Dez Mandamentos, pois não faz distinção entre eles.
Isso permite concluir que, para Teófilo, que era líder da igreja em Antioquia, a guarda do sábado era irrelevante, caso contrário, por que teria omitido aquele mandamento que a Ellen White considera o mais importante? Aliás, Teófilo não menciona nenhuma vez o sábado! Também permite concluir que Teófilo entendia que existem mandamentos de natureza moral fora dos Dez Mandamentos, mas que foram entregues por Deus a Moisés.
Demonstração da Pregação Apostólica (por Ireneu; 195 A.D.)
Ireneu foi discípulo de Policarpo de Esmirna, que, por sua vez, foi discípulo do apóstolo João e de Inácio de Antioquia. Nasceu aproximadamente no ano de 130 e morreu em 202.
Ireneu nos deixou Demonstração da pregação apostólica, um importante texto em que procura “demonstrar a verdade do Evangelho por meio de profecias do Antigo Testamento que foram cumpridas por Jesus Cristo”.13 O objetivo dessa obra era edificar os cristãos.
“Os que foram, assim, libertados, Deus não quer conduzi-los sob a Lei de Moisés; pois, de fato, a Lei foi cumprida por Cristo, mas [quer] que caminhemos livres na novidade dada pela fé no Filho de Deus, na renovação da Palavra. …
“Nós, de fato, acolhemos o Senhor da Lei, o Filho de Deus e, mediante a fé nele, aprendemos a ‘amar a Deus com todo o coração e o próximo como a nós mesmos’. Ora, o amor a Deus exclui qualquer pecado, e o amor ao próximo não faz mal a ninguém. …
“Portanto, não temos necessidade da Lei, como pedagogo; eis que nós falamos com o Pai e estamos face a face com ele nos tornando crianças sem malícia, e fortes em toda justiça e honestidade. A Lei, de fato, não dirá mais: ‘Não cometerás adultério’ àquele que não concebeu o desejo pela mulher alheia; ou ‘Não cobiçarás a casa do teu próximo. Não cobiçarás a mulher de teu próximo, nem o seu escravo, nem a sua escrava, nem o seu boi, nem o seu jumento, nem coisa alguma que pertença a teu próximo’ àquele que não tem interesse pelas coisas da terra, mas faz provisão para o céu; nem ‘olho por olho e dente por dente’ àquele que não tem inimigos e trata todos como próximo, e por isso não levanta as mãos para vingar-se; não exigirá o dízimo de quem consagrou a Deus todos os seus bens e deixou pai, mãe, toda a família, para seguir o Verbo de Deus. Não mandará mais reservar um dia de repouso àquele que todo dia observa o sábado, ou seja, que rende culto a Deus no templo de Deus, que é o corpo do homem, e pratica sempre a justiça. ‘Porque é amor que eu quero e não sacrifícios, conhecimento de Deus mais do que holocaustos’.”14
Comentário sobre o texto de Ireneu:
- Deus não quer conduzir os cristãos sob a lei de Moisés, porque a lei foi cumprida por Cristo. Em outras palavras, a santificação do crente em Jesus não é resultado da obediência a Moisés.
- Mediante a fé em Jesus aprendemos a amar, e o amor a Deus exclui qualquer pecado.
- A lei não manda mais reservar um dia de repouso para a pessoa que todo dia observa o sábado, ou seja, que rende culto a Deus no templo de Deus, que é o corpo do homem, e pratica sempre a justiça. Ou seja, de acordo com Ireneu, o sábado é uma realidade diária para quem rende culto a Deus no corpo do homem e sempre pratica a justiça.
Carta a Diogneto (190 a 200 A.D.)
Essa é uma carta escrita por alguém que se denomina Mathetes (“discípulo” em grego). De acordo com estudiosos, a epístola foi escrita entre 190 e 200 A.D.
“Não creio que tenhas necessidade de que eu te informe sobre o escrúpulo [dos judeus] a respeito de certos alimentos, a sua superstição sobre os sábados, seu orgulho da circuncisão, seu fingimento com jejuns e novilúnios, coisas todas ridículas, que não merecem nenhuma consideração.”15
A Carta a Diogneto menciona a “superstição sobre os sábados“, isto é, a crença judaica de que era necessário guardar o sétimo dia da semana. Repare que não há nenhuma defesa da guarda do domingo.
Resposta aos judeus (por Tertuliano; 198 A.D.)
Nascido em 160 e falecido em 225, Tertuliano escreveu inúmeras obras, uma das quais nos interessa: Resposta aos judeus. Nesse livro, escrito possivelmente em 198 A.D., o capítulo 4 trata da observância do sábado:
“Segue-se, portanto, que, na medida em que ficou demonstrado que a abolição da circuncisão carnal e da antiga lei ocorreu em seu devido tempo, também ficou demonstrado que a observância do Sábado foi temporária.”16
Tertuliano ensina que:
- a antiga lei foi abolida;
- a guarda do sábado era temporária!
Ensino dos Apóstolos (250 A.D.)
Essa é uma obra escrita em siríaco (um dialeto do aramaico). É bem possível que seja de data bem anterior a 250.17
“Os apóstolos ainda orientaram: no primeiro dia da semana deve haver culto e a leitura das Santas Escrituras e a eucaristia [isto é, ceia], porque no primeiro dia da semana nosso Senhor ressuscitou do lugar dos mortos e no primeiro dia da semana ele ascendeu ao céu e no primeiro dia da semana ele aparecerá finalmente com os anjos do céu.”18
A orientação do Ensino dos Apóstolos é mais detalhado e mais claro do que na Didaqué. Descobrimos o seguinte:
- A orientação era realizar culto no domingo, e nesse culto devia haver leitura da Bíblia e celebração da ceia.
- A justificativa para ser justamente o domingo foi que Jesus ressuscitou no domingo e ascendeu ao céu no domingo.
Alegações adventistas
“Esses textos não são confiáveis”
O incômodo com os textos acima leva alguns adventistas a rejeitá-los sob a alegação de não serem confiáveis. Apelam para a experiência do ex-padre canadense Charles Chiniquy, que se converteu a Cristo e relata a história de sua conversão no livro Fifty years In the Church of Rome [Cinquenta anos na Igreja de Roma].19 No livro Chiniquy faz duras critica à formação teológica dos padres católicos, pois eles gastam muito mais tempo estudando os pais da igreja do que a Bíblia, pois têm de interpretar a Bíblia à luz dos pais da igreja. A crítica é válida. É um problema do catolicismo.
Mas a alegação adventista não passa de sofisma. É que aqui não estamos usando os pais da igreja para fundamentar doutrina, mas apenas para mostrar qual era a prática dos cristãos nos primeiros 200 anos de cristianismo.
Esses textos são tão confiáveis que estudiosos adventistas citam os pais da igreja em suas obras. Por exemplo, em sua tese de doutorado Samuele Bacchiocchi cita vários pais da igreja e documentos antigos como fontes históricas.20 Alguns dos pais citados pelo teólogo adventista são Agostinho, Ambrósio, Atanásio, Clemente de Alexandria, Clemente de Roma, Crisóstomo, Eusébio de Cesareia, Inácio de Antioquia, Ireneu, Justino Mártir, Jerônimo, Orígenes, Policarpo e Tertuliano. Aliás, Bachiocchi cita todos os documentos que apresentei acima, com exceção de Demonstração da pregação apostólica, de Ireneu, embora mencione outros textos do próprio Ireneu dezenas de vezes!
“O debate tem de ser baseado na Bíblia”
Esse é outro argumento usado por adventistas para fugir de examinar os textos dos pais da igreja. Acontece que o assunto não é história bíblica, mas história dos primeiros 200 anos de cristianismo. Para estudar essa história é preciso consultar as fontes. E as fontes são os pais da igreja. Então o argumento adventista não procede.
Conclusão
Os vários textos acima não sugerem, de modo algum, que os cristãos têm de se reunir aos domingos, pois não existe tal lei no Novo Testamento. Paulo deixa claro que, no calendário de Deus, não existem dias santos:
“Um faz diferença entre dia e dia; outro julga iguais todos os dias. Cada um tenha opinião bem definida em sua própria mente.” (Romanos 14.5)
Por outro lado, esses textos demonstram, sim, que nem a igreja primitiva nem a igreja antiga —a igreja antes de Constantino — guardaram o sábado por motivo de descanso ou de adoração.
Infelizmente a Ellen White passou uma narrativa histórica falsa.
Para refletir
- Quais dos textos acima são mais claros na refutação de que os cristãos guardavam o sábado?
- O que os textos acima ensinam sobre a obrigatoriedade da guarda do domingo?
- Por que a Ellen White declarou que nos primeiros séculos todos os cristãos guardavam o sábado?
NOTAS |
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1. Não encontrei nem em inglês em português nenhum estudo que examine com mais atenção os textos escritos até aproximadamente o ano 200 e que, de uma maneira ou outra, tratem da questão da guarda do sábado pelos cristãos. Há, sim, livros e artigos que examinam o assunto, mas nenhum cobre todos os textos antigos que apresento aqui. Postagem atualizada em 05 mai. 2021. 2. Original: “In the first centuries the true Sabbath had been kept by all Christians. They were jealous for the honor of God, and, believing that His law is immutable, they zealously guarded the sacredness of its precepts.” (The great controversy [O grande conflito], p. 52.) 3. Barnabé 16.9. O texto da Epístola de Barnabé é encontrado em Padres apostólicos, tradução de tradução Ivo Storniolo; Euclides M. Balancin, Coleção Patrística (São Paulo: Paulus, 1995), p. 187-208. Também está disponível em http://www.e-cristianismo.com.br/pt/apostolicos/64-epistola-de-barnabe, acesso em 07 set. 2020. 4. Instrução dos doze apóstolos (Didaqué) 14.1. In: Padres apostólicos, tradução de Ivo Storniolo; Euclides M. Balancin, Coleção Patrística (São Paulo: Paulus, 1995), p. 221-234. Também está disponível em http://www.e-cristianismo.com.br/historia-do-cristianismo/pais-apostolicos/didaque-a-instrucao-dos-doze-apostolos.html, acesso em 09 fev. 2021. 5. Samuele Bacchiocchi, From Sabbath to Sunday (Rome: The Pontifical Gregorian University Press, 1977), p. 174. Bacchiocchi afirmou que, ao contrário do que a Ellen White escreveu em O grande conflito, o sábado foi guardado pelos primeiros cristãos, mas só até o ano de 135. Na postagem Teólogo adventista desmente Ellen White eu mostro que Bacchiocchi também estava errado. 6. Epístola de Inácio aos Magnésios 9.1. O texto dessa epístola é encontrado em Padres apostólicos, tradução de tradução Ivo Storniolo; Euclides M. Balancin, Coleção Patrística (São Paulo: Paulus, 1995), p. 61-64. Também está disponível em http://www.veritatis.com.br/patristica/obras/1396- carta-de-santo-inacio-de-antioquia-aos-magnesios; acesso em 07 set. 2020. 7. Bart D. Ehrman, Lost scriptures: books that did not make it into the New Testament (Oxford: Oxford University Press, 2003), p. 32. 8. Evangelho de Pedro 50. In: Bart Ehrman, Lost scriptures, p. 34. 9. Justino Mártir, Primeira Apologia 67.3-7. In: I e II apologias; Diálogo com Trifão, tradução de tradução Ivo Storniolo; Euclides M. Balancin, Coleção Patrística (São Paulo: Paulus, 1995). 10. Justino Mártir, Diálogo com Trifão. In: I e II apologias; Diálogo com Trifão, tradução de tradução Ivo Storniolo; Euclides M. Balancin, Coleção Patrística (São Paulo: Paulus, 1995). 11. Orígenes, Contra Celso, tradução de Orlando dos Reis, Coleção Patrística 20 (São Paulo: Paulus, 2004), 8.22. [12]: Teófilo de Antioquia, Apologia a Autólico, livro 3, parágrafo 9. In: Padres apologistas, tradução de Ivo Storniolo, Euclides M. Balancin, Coleção Patrística (São Paulo: Paulus, 1995), p. 175. 13. Ari Luis do Vale Ribeiro, “Introdução”. In: Irineu de Lyon, Demonstração da pregação apostólica, tradução de Ari Luis do Vale Ribeiro, Coleção Patrística (São Paulo: Paulus, 2014). 14. Irineu de Lyon, Demonstração da pregação apostólica, tradução de Ari Luis do Vale Ribeiro, Coleção Patrística (São Paulo: Paulus, 2014), parágrafos 89, 95, 96. Há traduções em inglês disponíveis em https://www.ccel.org/ccel/irenaeus/demonstr.iv.html e https://archive.org/details/stirenaeusproofo012024mbp/page/n117/mode/2up, acesso em 09 mar. 2021. 15. O texto da Carta a Diogneto é encontrado em Padres apologistas, tradução de Ivo Storniolo; Euclides M. Balancin, Coleção Patrística (São Paulo: Paulus, 1995), p. 61-64. Uma tradução em inglês está disponível em http://www.earlychristianwritings.com/text/diognetus-lightfoot.html; acesso em 09 mar. 2021. 16. An answer to the Jews, cap. 4, tradução de S. Thelwall. In: Ante-Nicene Fathers, vol. 3, Latin Christianity: its founder, Tertullian , edição de Philip Schaff (Grand Rapids: Christian Classics Ethereal Library: s.d.). 17. De acordo com Mark Dickens, “Nestorian Christianity in Central Asia” (disponível em https://www.academia.edu/398258/Nestorian_Christianity_In_Central_Asia; acesso em 05 mai. 2021), a obra Ensino dos apóstolos foi escrita não depois de 250 A.D. 18. The teaching of the apostles. In: Ante-Nicene Fathers, vol. 8, The Twelve Patriarchs, Excerpts and Epistles, The Clementia, Apocrypha, Decretals, Memoirs of Edessa and Syriac Documents, Remains of the First Age, edição de Philip Schaff (Grand Rapids: Christian Classics Ethereal Library: s.d.), p. 1847 (disponível em https://ccel.org/ccel/schaff/anf08/anf08.ix.vii.html, acesso em 05 mai. 2021). 19. Charles Chiniquy, Fifty years In the Church ff Rome (New York: Fleming H. Revell, 1886) (disponível em https://www.gutenberg.org/files/51634/51634-h/51634-h.htm, acesso em 17 mar. 2021). 20. Samuele Bacchiocchi, From Sabbath to Sunday: a historical investigation of the rise of Sunday Observance in early Christianity (Rome: Pontifical Gregorian University Press, 1977), passim. |