RESUMO |
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Evangélicos, adventistas e inspiração da Bíblia1
A inspiração da Bíblia é, em poucas palavras, a doutrina de que a Bíblia tem origem divina. De modo geral os cristãos aceitam essa doutrina, mas existem diversas e diferentes interpretações do que é a inspiração. Conforme veremos, evangélicos e adventistas não pensam da mesma maneira sobre a inspiração da Bíblia.
Adventistas, tanto pastores quanto leigos, às vezes tentam justificar erros nos livros, cartas e outros escritos de Ellen White sob a alegação de que os escritores bíblicos também cometeram lapsos ou equívocos ou erros ou enganos.2
A posição oficial da IASD
“As Escrituras Sagradas são a revelação infalível, suprema e repleta de autoridade de sua vontade.”3
Repare que o texto diz que “as Escrituras Sagradas são a revelação infalível … de sua vontade”, isto é, da vontade de Deus. Não está dizendo que tudo o que está na Bíblia não tem erro!
Ao contrário de documentos oficiais de igrejas do protestantismo evangélico, essa crença fundamental não diz que a Bíblia é inerrante, mas apenas que ela é revelação infalível da vontade de Deus.
A diferença é sutil, mas existe. E é por causa dessa sutileza que as igrejas evangélicas rejeitam a posição das igrejas cristãs liberais.
Exemplos de autores adventistas
Alguns exemplos confirmam que essa é a posição oficial da IASD.
Amin A. Rodor, coordenador do Seminário Adventista Latino Americano de Teologia
Amin Rodor, doutor em teologia, declara: “A doutrina da inerrância mostra desconsideração para com os fenômenos da Escritura, exigindo o que Deus não intencionou: um superlivro, um registro perfeito e inerrante em cada detalhe particular. Evidentemente isto só pode ter efeitos perniciosos.”4
Isaac Malheiros, pastor adventista e doutor em teologia
Diz Isaac Malheiros:
“O adventismo não sustenta algumas crenças centrais do fundamentalismo, como a inspiração verbal e a inerrância bíblica.”5
Tratado de teologia adventista do sétimo dia
No livro Tratado de teologia adventista do sétimo dia lemos:
“As Escrituras [estão] sujeitas às limitações, imperfeições e condicionamentos históricos da existência humana.”6
Revista Ministry, órgão oficial dos pastores adventistas
A IASD tem, em língua inglesa, uma revista voltada especificamente para seus pastores. Um artigo publicado na edição de janeiro de 2013 da revista Ministry afirma:
“A sugestão de que a Bíblia contém erros pode ser fácil e equivocadamente entendida com o sentido de que Deus comete erros ou de que ele tem responsabilidade por eles, mas não é o caso. As discrepâncias e imperfeições nas Escrituras são resultado das fraquezas humanas.”7
Revista Spectrum, revista dos “adventistas culturais”
Um artigo publicado na revista Spectrum, uma das várias publicações de adventistas culturais, traz o seguinte:
“Deus é inerrante e infalível; a Bíblia não é nenhuma coisa nem outra. … A Bíblia contém erros, grandes e pequenos, porque seus escritores eram seres humanos. Às vezes os erros eram ‘inocentes’; outras vezes os erros foram inventados, eram intencionais e serviam a um objetivo claramente definido.”8
Nicholas Miller, professor na Universidade Adventista Andrews
Miller, professor de história na principal universidade adventista, declara:
“Os adventistas do sétimo dia têm uma visão elevada das Escrituras, mas não acreditam na inerrância verbal da Bíblia.”9
A inspiração verbal das Escrituras
Já os protestantes de orientação evangélica creem na inspiração verbal das Escrituras, ou seja, que cada palavra da Bíblia foi inspirada por Deus e que, portanto, ela não tem erros. Há várias passagens bíblicas que fundamentam essa posição e serão analisadas logo adiante.
Quanto aos aparentes erros das Escrituras, é possível explicá-los, conforme exemplos que veremos mais abaixo.
Quem defende a “errância” das Escrituras
Existem cristãos que rejeitam a inspiração verbal. Para eles, o que houve foi, na melhor das hipóteses, uma inspiração das ideias — não das palavras — da Bíblia. Na pior das hipóteses, a Bíblia é um livro como outro qualquer, pois os autores bíblicos eram falíveis no que escreveram.
O resultado disso é aquilo que se convencionou chamar de liberalismo teológico. A rejeição da inspiração verbal da Bíblia tem levado muitos a rejeitar:
- a autoridade da Bíblia;
- a ressurreição de Cristo;
- o nascimento virginal de Jesus;
- a veracidade dos milagres da Bíblia;
- etc.
É claro que os adventistas, pelo menos em grande parte,10 não chegaram a rejeitar essas verdades bíblicas.
Mas rejeitar a inspiração verbal abre caminho para ir, pouco a pouco, relativizando a autoridade da Bíblia. O caminho é simples: se não gosto de alguma doutrina, posso tentar usar supostos lapsos ou equívocos para rejeitar esse ensino.
Base bíblica para a inspiração verbal das Escrituras
Para entender o que a Bíblia diz a respeito de si mesma, começaremos pelo ensino de Jesus. Em seguida veremos o que os apóstolos Paulo e Pedro têm a dizer sobre o assunto. E, finalmente, examinaremos alguns textos do Antigo Testamento.
João 10.34-36
Em Salmos 82.6 nós lemos:
“Eu disse: ‘Sois deuses, sois todos filhos do Altíssimo’.”
Essa afirmação parece absurda. Como é que o salmista pode dizer que você e eu, meros mortais, somos deuses? Não faz sentido. Mas apesar disso, Jesus cita esse versículo:
“34Replicou-lhes Jesus: ‘Não está escrito na vossa lei: “Eu disse: sois deuses”? 35Se ele chamou deuses àqueles a quem foi dirigida a palavra de Deus, e a Escritura não pode falhar, 36então, daquele a quem o Pai santificou e enviou ao mundo, dizeis: Tu blasfemas; porque declarei: sou Filho de Deus’?”
Jesus, ao contrário dos adventistas, não recorreu à alegação de que os escritores bíblicos às vezes cometiam lapsos ou descuidos. Pelo contrário, ele diz que “a Escritura não pode falhar”!
Não há lapsos. Não há falhas. Não há erros. Não há enganos. Não há equívocos.
Mateus 5.18
“Porque em verdade vos digo: até que o céu e a terra passem, nem um i ou um til jamais passará da Lei, até que tudo se cumpra.”
Foi Jesus quem disse isso em seu famoso Sermão do Monte. Quando Jesus mencionou o “i” e o “til”, ele estava se referindo, respectivamente, à menor letra e a um sinal de acentuação usados no alfabeto hebraico/aramaico. Ou seja, não apenas palavras mas até detalhes das palavras bíblicas são inteiramente confiáveis.
Ou seja, Jesus aceita as exatas palavras da Lei, até mesmo parte das palavras. E note que ele usa a frase solene “em verdade vos digo” para indicar sua aceitação daquelas exatas palavras.
Para Jesus não há a mínima possibilidade da Lei ter algum lapso, erro, engano, equívoco.
Mateus 22.31-32
“31E, quanto à ressurreição dos mortos, não tendes lido o que Deus vos declarou: 32‘Eu sou o Deus de Abraão, o Deus de Isaque e o Deus de Jacó’? Ele não é Deus de mortos, e sim de vivos.”
Jesus falou isso num debate com os saduceus, um grupo religioso judeu que não acreditava na vida após a morte. Aí Jesus está citando as palavras ditas por Deus a Moisés em Êxodo 3.6:
“Eu sou o Deus de teu pai, o Deus de Abraão, o Deus de Isaque e o Deus de Jacó.”
Jesus recorre ao tempo verbal “eu sou”, e não “eu fui”, para provar que existe, sim, ressurreição. E, com isso, Jesus está indiretamente reafirmando a autoridade e inerrância das Escrituras.
Se Jesus achasse que as Escrituras podem ter lapsos, erros, enganos ou equívocos, será que poderia ter usado esse argumento? Claro que não. O argumento se baseia, em última instância, na ideia de que as Escrituras não têm erro.
Mateus 22.43-45
“43Replicou-lhes Jesus: ‘Como, pois, Davi, pelo Espírito, chama-lhe Senhor, dizendo: 44“Disse o Senhor ao meu Senhor: ‘Assenta-te à minha direita, até que eu ponha os teus inimigos debaixo dos teus pés’?” 45Se Davi, pois, lhe chama Senhor, como é ele seu filho’?”
Para fundamentar seu raciocínio, Jesus apela de novo à autoridade literal da Bíblia. Em outras palavras, ao falar aos fariseus, Jesus reafirma que as Escrituras estão certas apesar da aparente incoerência.
Pode parecer que é lapso, erro, engano, equívoco da Bíblia. Mas só parece, porque as Escrituras têm autoridade.
1Coríntios 2.13
“Disto também falamos, não em palavras ensinadas pela sabedoria humana, mas palavras ensinadas pelo Espírito, conferindo coisas espirituais com espirituais.”
O apóstolo Paulo declara que suas palavras, e não apenas as ideias, foram ensinadas pelo Espírito.
1Tessalonicenses 2.13
“Outra razão ainda temos nós para, incessantemente, dar graças a Deus: é que, tendo vós recebido a palavra que de nós ouvistes, que é de Deus, acolhestes não como palavra de homens, e sim como, em verdade é, a palavra de Deus, a qual, com efeito, está operando eficazmente em vós, os que credes.”
Essa passagem ensina algo parecido com o texto anterior, 1Coríntios 2.13. O que Paulo está afirmando aqui é que, embora sejam humanas, suas palavras são também “palavra de Deus” e devem, assim, ser recebidas.
Acaso há lapso, erro, equívoco na Palavra de Deus?
Gálatas 3.16
“Ora, as promessas foram feitas a Abraão e ao seu descendente. Não diz: ‘E aos descendentes’, como se falando de muitos, porém como de um só: ‘E ao teu descendente’, que é Cristo.”
Paulo se apega a um detalhe: a palavra “descendente”, que está no singular e não no plural. Se o apóstolo achasse que os autores bíblicos poderiam ter cometido lapsos, não teria usado esse argumento.
2Pedro 3.15-16
“15Como igualmente o nosso amado irmão Paulo … 16costuma fazer em todas as suas epístolas, nas quais há certas coisas difíceis de entender, que os ignorantes e instáveis deturpam, como também deturpam as demais Escrituras, para a própria destruição deles.”
Aqui o apóstolo Pedro está declarando que existem textos — tanto de Paulo quanto de outros autores bíblicos — que são difíceis de entender e que, por isso, certas pessoas deturpam. Pedro não está falando especificamente da inerrância, mas da dificuldade de entender passagens bíblicas.
Indiretamente Pedro está dizendo que as Escrituras não erram, pois pessoas não conseguem entender o que elas dizem e, por isso, distorcem o sentido da Palavra de Deus.
Êxodo 4.12
“Vai, pois, agora, e eu serei com a tua boca e te ensinarei o que hás de falar.”
Essas são palavras de Deus a Moisés.
Se são palavras do próprio Senhor, acaso pode haver lapso, erro, engano, equívoco?
2Samuel 23.2
“O Espírito do SENHOR fala por meu intermédio, e a sua palavra está na minha língua.”
Foi Davi quem fez essa declaração. A palavra do Senhor estava na boca de Davi. Davi falou exatamente o que Deus queria que ele falasse.
Se são palavras do próprio Senhor, acaso pode haver lapso, erro, engano, equívoco?
Jeremias 1.6,9
“6Então, lhe disse eu: ‘Ah! SENHOR Deus! Eis que não sei falar, porque não passo de uma criança’. … 9Depois, estendeu o SENHOR a mão, tocou-me na boca e o SENHOR me disse: ‘Eis que ponho na tua boca as minhas palavras’.”
As palavras registradas no livro de Jeremias são palavras que o próprio Senhor pôs na boca do profeta!
Se são palavras do próprio Senhor, acaso pode haver lapso, erro, engano, equívoco?
Ezequiel 3.4
“[O Senhor] disse-me ainda: ‘Filho do homem, vai, entra na casa de Israel e dize-lhe as minhas palavras‘.”
O profeta Ezequiel recebeu as palavras do Senhor e as retransmitiu à casa de Israel.
Se são palavras do próprio Senhor, acaso pode haver lapso, erro, engano, equívoco?
Números 22.38; 23.12,16
“22.38Respondeu Balaão a Balaque: ‘… A palavra que Deus puser na minha boca, essa falarei. … 23.12Porventura, não terei cuidado de falar o que o SENHOR pôs na minha boca?’ … 16Encontrando-se o SENHOR com Balaão, pôs-lhe na boca a palavra e disse: ‘Torna para Balaque e assim falarás’.”
A história de Balaão e Balaque é para lá de diferente.
Balaão era um “profeta de aluguel”. Seu interesse era o dinheiro, e ele profetizava em troca de pagamento.
Um dia Balaque, que era rei dos moabitas, viu que os israelitas estavam se aproximando das fronteiras de Moabe. Balaque resolveu contratar os serviços do profeta Balaão, para que este profetizasse contra Israel.
Mas Deus não deixou que Balaão, apesar de todo seu interesse no dinheiro, falasse o que bem entendesse. Deus impediu o profeta Balaão de falar contra Israel. Deus controlou até mesmo as palavras de um mal profeta!
A inspiração em resumo
Os teólogos evangélicos entendem que a inspiração é verbal e plenária. É verbal porque Deus inspirou não apenas as ideias, mas as próprias palavras. E é plenária porque Deus inspirou a Bíblia inteira e não apenas uma parte dela.
A inspiração verbal e plenária não significa que Deus ditou as palavras da Bíblia. Nos textos da Bíblia encontramos diferentes gêneros literários: narrativa, poesia, parábola, epístola, etc. E dentro desses vários gêneros encontramos diferentes estilos. Cada autor bíblico escreveu à sua maneira, com seu jeito próprio de se expressar e com seu próprio vocabulário, mas cada uma de suas palavras veio de Deus.
Por isso, podemos dizer que Deus é o autor da Bíblia, ainda que ela tenha vários autores. E, por isso, também podemos dizer que a Bíblia não contém erros.
Alegações adventistas
É claro que os adventistas têm seus argumentos para defender a existência de lapsos, equívocos, enganos ou erros na Bíblia. Aliás, em conversa com adventistas, inclusive com um pastor em minha casa, ouvi a desculpa de que pelo menos cinco passagens bíblicas confirmam a ocorrência desses lapsos. São elas:
- Marcos 1.2-3
- Mateus 27.9-10
- Lucas 8.27 x Marcos 5.1-2 x Mateus 8.28
- 1Coríntios 10.8 x Números 25.9
- Atos 9.7 x Atos 22.9
Então vamos analisar esses três textos e conferir se eles justificam ou não a posição adventista.
Marcos 1.2-3
O primeiro texto usado pelos adventistas para tentar provar que os escritores bíblicos às vezes se equivocaram é Marcos 1.2-3:
“2Conforme está escrito na profecia de Isaías: Eis aí envio diante da tua face o meu mensageiro, o qual preparará o teu caminho; 3voz do que clama no deserto: Preparai o caminho do Senhor, endireitai as suas veredas”.
O argumento adventista é o seguinte: Essa não é uma citação de Isaías, mas de Malaquias. Então o autor do evangelho errou, o que prova que às vezes os autores bíblicos cometiam pequenos erros ou lapsos.
Mas o raciocínio adventista é superficial, pois faltou um exame mais aprofundado do texto bíblico. É que aqui temos textos de dois profetas diferentes citados consecutivamente:
“Eis que eu envio o meu mensageiro, que preparará o caminho diante de mim.” (Malaquias 3.1)
“Voz do que clama no deserto: Preparai o caminho do SENHOR; endireitai no ermo vereda a nosso Deus.” (Isaías 40.3)
Marcos 1.2 (” Eis aí envio diante da tua face o meu mensageiro, o qual preparará o teu caminho”) é citação de Malaquias.
E Marcos 1.3 (“voz do que clama no deserto: Preparai o caminho do Senhor, endireitai as suas veredas”) é citação de Isaías.
Aliás, metade da citação de Malaquias, aquela parte que fala de preparar o caminho do Senhor, também aparece em Isaías. O livro de Isaías era bem mais longo (66 capítulos no total) e muito mais conhecido que o de Malaquias (4 capítulos no total). Essa é a razão de Marcos não mencionar o nome de Malaquias.
Marcos não trocou o nome de Isaías pelo de Malaquias; apenas omitiu o de Malaquias. A omissão do nome de um profeta menos destacado não deve ser considerada erro ou mesmo lapso mental.
Mateus 27.8-10
“Então, se cumpriu o que foi dito por intermédio do profeta Jeremias: Tomaram as trinta moedas de prata, preço em que foi estimado aquele a quem alguns dos filhos de Israel avaliaram; e as deram pelo campo do oleiro, assim como me ordenou o Senhor.”
Tal como em Marcos 1.2-3, aqui em Mateus também há duas citações. A primeira é de Zacarias. A segunda, de Jeremias, outro profeta bem mais conhecido.
“Eu lhes disse: se vos parece bem, dai-me o meu salário; e, se não, deixai-o. Pesaram, pois, por meu salário trinta moedas de prata. Então, o SENHOR me disse: Arroja isso ao oleiro, esse magnífico preço em que fui avaliado por eles. Tomei as trinta moedas de prata e as arrojei ao oleiro, na Casa do SENHOR.” (Zacarias 11.12-13)
“Contudo, ó SENHOR Deus, tu me disseste: Compra o campo por dinheiro.” (Jeremias 32.25)
Para entender bem o assunto, vale a pena examinar o contexto da compra do campo pelo profeta, o que é contado em Jeremias 32.2-3, 8-9, 13-15, 25:
“2Ora, nesse tempo o exército do rei da Babilônia cercava Jerusalém; Jeremias, o profeta, estava encarcerado no pátio da guarda que estava na casa do rei de Judá. 3Pois Zedequias, rei de Judá, o havia encerrado. … 8Veio … Hananel, filho de meu tio, ao pátio da guarda e me disse: Compra agora o meu campo que está em Anatote, na terra de Benjamim; porque teu é o direito de posse e de resgate; compra-o. … 9Comprei, pois, de Hananel, filho de meu tio, o campo que está em Anatote; e lhe pesei o dinheiro, dezessete siclos de prata. …
13Perante eles dei ordem a Baruque, dizendo: 14Assim diz o SENHOR dos Exércitos, o Deus de Israel: Toma esta escritura, esta escritura da compra, tanto a selada como a aberta, e mete-as num vaso de barro, para que se possam conservar por muitos dias; 15porque assim diz o SENHOR dos Exércitos, o Deus de Israel: Ainda se comprarão casas, campos e vinhas nesta terra. … 25Contudo, ó SENHOR Deus, tu me disseste: Compra o campo por dinheiro e chama testemunhas, embora já esteja a cidade entregue nas mãos dos caldeus.”
O contexto é:
- Jerusalém está sitiada (v. 2);
- Jeremias está preso (v. 2);
- mesmo preso, Jeremias tem direito de resgatar um campo (v. 7);
- Jeremias exerce esse direito (v. 9);
- esse é um ato profético que simbolizava que ainda se comprariam “casas, campos e vinhas nesta terra” (v. 14-15).
Cabem ainda algumas observações:
- A palavra “campo” não aparece em Zacarias. Mas ocorre em Jeremias.
- A expressão “campo do oleiro” não aparece em Zacarias, mas “oleiro” e “casa do oleiro” são mencionados inúmeras vezes em Jeremias 18 e 19.
- Os adquirentes do campo foram todos eles sacerdotes: Jeremias (que era de família sacerdotal) e os principais sacerdotes (Mateus 27).
- Em Zacarias não há uma transação imobiliária, mas pagamento de salário; em Jeremias ocorre uma compra.
- O objeto de compra foi um campo tanto em Jeremias quanto em Mateus.
- O contexto é de resgate tanto em Jeremias (32.7), quanto em Mateus (Jesus como resgate).
O único evento mencionado na Bíblia que confirma explicitamente o cumprimento da profecia de Jeremias é justamente a compra do campo do oleiro pela liderança religiosa judaica que crucificou Jesus!
Vejo aí Jeremias como um tipo de Cristo: preso pela liderança, Jesus, tem e exerce o direito de resgate.
Concluindo, tal como no caso de Marcos 1.2-3, aqui em Mateus 27.9-10 temos a junção de duas profecias.
Mateus não trocou o nome de Zacarias pelo de Jeremias; apenas omitiu o de Zacarias. Assim como aconteceu no texto de Marcos 1.2-3, aqui também se menciona apenas um profeta, a saber, o mais destacado.
Lucas 8.27 x Marcos 5.1-2 x Mateus 8.28
Uma comparação entre os relatos dos três Evangelhos sobre um mesmo acontecimento de expulsão de demônios tem levado algumas pessoas a questionarem a confiabilidade histórica dos Evangelhos. As passagens são:
Lucas 8.27
“Então, rumaram para a terra dos gerasenos, fronteira da Galiléia. Logo ao desembarcar, veio da cidade ao seu encontro um homem possesso de demônios.”
Na terra dos gerasenos um endemoniado sai da cidade e vai ao encontro de Jesus.
Marcos 5.1-2
“Entrementes, chegaram à outra margem do mar, à terra dos gerasenos. Ao desembarcar, logo veio dos sepulcros, ao seu encontro, um homem possesso de espírito imundo.”
Na terra dos gerasenos um endemoniado sai dos sepulcros e vai ao encontro de Jesus.
Mateus 8.28
“Tendo ele chegado à outra margem, à terra dos gadarenos, vieram-lhe ao encontro dois endemoninhados, saindo dentre os sepulcros”
Na terra dos gadarenos dois endemoniados saem dos sepulcros e vão ao encontro de Jesus.
Afinal,
- Eram 1 ou 2 endemoniados?
- Saíram da cidade ou dos sepulcros?
- Eram gerasenos ou gadarenos?
Eram 1 ou 2 endemoniados?
“Em vários casos, um Evangelho se refere a dois personagens quando os paralelos mencionam apenas um (dois cegos em Mateus 20.30 e um em Marcos 10.46; dois endemoniados em Mateus 8.28 e um em Marcos 5.2; ou dois anjos junto ao túmulo em Lucas 24.4 e um em Marcos 16.5). No entanto, esse fenômeno não ocorre com frequência suficiente para, ao contrário do que alguns tentam fazer, permitir que se fale de uma tendência na tradição oral de acrescentar personagens ou de uma preocupação redacional de apresentar duas testemunhas de um acontecimento. É mais natural sugerir que em cada caso houve realmente dois personagens presentes, mas que um deles atuou como porta voz dos dois e dominou a cena de um modo que deixou o outro facilmente ignorado em narrativas que tão costumeiramente omitiam detalhes não essenciais.”11
Marcos e Lucas omitem um dos endemoniados porque se concentra no outro, oferecendo muito mais detalhes sobre aquele que tinha o demônio que se identificou como Legião, o que sugere que ele era mais importante do que o outro endemoniado e, por isso, recebe toda a atenção.
Detalhes de Mateus sobre o endemoniado:
- diálogo de Jesus com os endemoniados
Detalhes de Lucas sobre o endemoniado:
- diálogo de Jesus com o endemoniado
- não se vestia
- não habitava em casa, mas nos sepulcros
- muitas vezes o espírito imundo havia se apoderado do homem
- nem correntes conseguiam prendê-lo
- destruía tudo com violência
- o demônio o impelia para o deserto
- o nome do demônio era Legião
Detalhes de Marcos sobre o endemoniado:
- diálogo de Jesus com o endemoniado
- vivia nos sepulcros
- nem correntes conseguiam prendê-lo
- perambulava de dia e de noite gritando entre os sepulcros e nos montes
- feria-se com pedras
- o nome do demônio era Legião
Os endemoniados saíram da cidade ou dos sepulcros?
Sepulcros ficavam ao lado das cidades. É o caso do sepulcro onde Jesus foi sepultado. Então, para pessoas que estavam indo a pé para a cidade onde Jesus realizou o milagre, não causa estranheza uma delas dizer que o endemoniado saiu do sepulcro e outra dizer que saiu da cidade. Não é incomum agirmos assim hoje em dia.
Por exemplo, alguém pode dizer a um amigo “Estou chegando de São Paulo”, mas, na verdade, estar chegando de Guarulhos, uma cidade que faz limite com São Paulo. Como Guarulhos faz parte da Grande São Paulo, a frase não causa estranheza. O mesmo raciocínio se aplica aqui, pois um dos textos afirma que o endemoniado saiu dos sepulcros, enquanto outro relata que saiu da cidade, pois, afinal os sepulcros ficavam ao lado da cidade.
Os endemoniados eram gerasenos ou gadarenos?
“De acordo com o que parecem ser os melhores manuscritos, em Marcos 5.1 e Lucas 8.26 Jesus foi para a região dos gerasenos quando curou o endemoniado chamado ‘Legião’, enquanto Mateus 8.28 identifica o local como a região dos gadarenos. Mas alguns manuscritos trazem, em cada caso, a variante oposta, ao passo que ainda outros se referem aos gergesenos. As cidades de Gerasa e Gadara ficavam ambas no leste da Galileia, mas, no que diz respeito a essa narrativa, longe demais do lago: a 48 e a 8 quilômetros de distância, respectivamente. Mas parece que o território de Gadara incluía a cidade de Khersa, que ficava na margem oriental. Khersa poderia ter sido facilmente grafada em grego da mesma maneira que Gerasa, levando à ambiguidade. Mateus, como de costume, tenta esclarecer uma ambiguidade, nesse caso substituindo por ‘gadarenos’. Presumivelmente ele não suspeitou que copistas posteriores menos familiarizados com a geografia da Palestina considerariam esse topônimo igualmente ambíguo, de modo que as diversas variantes textuais surgiram na tentativa de solucionar o problema. Então, na presente forma das traduções contemporâneas da Bíblia, Marcos está simplesmente apresentando uma grafia helenizada do nome da cidade, e Mateus, o nome da província.”12
1Coríntios 10.8 x Números 25.9
A terceira passagem citada pelos adventistas para “provar” que existem “imperfeições” na Bíblia é:
“E não pratiquemos imoralidade, como alguns deles o fizeram, e caíram, num só dia, vinte e três mil.”
Este teria sido um possível erro cometido por Paulo, a saber, o número de pessoas que morreram: “vinte e três mil”.
É que o livro de Números conta que foram “vinte e quatro mil”:
“Os que morreram da praga foram vinte e quatro mil.” (Números 25.9)
Isso confirmaria que Paulo se equivocou e seria uma prova de que escritores bíblicos (e também Ellen White) cometem lapsos. Ainda segundo os adventistas, Paulo teria se confundido com uma outra passagem, também de Números, que menciona “vinte e três mil”:
“Os que foram deles contados foram vinte e três mil.” (Números 26.62)
Mas não é preciso recorrer a um possível erro do apóstolo para explicar essa diferença.
Abaixo seguem as palavras de Mark Taylor, que escreveu o comentário sobre 1Coríntios para a série New American Commentary:
“Paulo menciona vinte e três mil que tombaram (morreram) num único dia, ao passo que Números registra mais outros mil que morreram sob o juízo de Deus. … Tanto Paulo quanto o texto do Antigo Testamento apresentam números redondos, e Paulo acrescenta que vinte e três mil morreram num único dia, um detalhe que não é registrado em Números. É possível que, tal como acontece em 1Coríntios 10.1-5, Paulo se tenha baseado numa tradição exegética que oferecia mais pormenores da história.”13
Em resumo, o argumento de Mark Taylor é o seguinte:
- Um número intermediário, tal como 23.500 pode ser arredondado para mais ou para menos. 1Coríntios 10.8 arredonda para menos; Números 25.9, para mais.
- É bem possível que Paulo tenha tido acesso a alguma tradição exegética judaica que traz essa informação, pois ele apresenta um detalhe que não aparece em Números 25: “vinte e três mil morreram em um só dia”.
João Calvino, em seu comentário sobre 1Coríntios, é outro que explica a diferença justamente com base no arredondamento dos números.14 Ainda outro comentarista, Charles Hodge, faz a seguinte observação:
“Moisés e Paulo estavam, como a maioria das outras pessoas, usando números redondos; e, quando inspirados por Deus, eles usaram esses números assim como usaram outras formas conhecidas de se expressar. Nenhum dos dois pretendeu falar com exatidão numérica, o que não era exigido pelas circunstâncias.”15
Atos 9.7 x Atos 22.9
A aparente contradição
Lucas relata a conversão de Paulo em Atos 9, e o próprio Paulo dá seu testemunho em Atos 22 e mais tarde em Atos 26. Um detalhe chama a atenção em Atos 9 e Atos 22:
“E os varões, que iam com ele, pararam espantados, ouvindo a voz, mas não vendo ninguém.” (Atos 9.7; Versão Almeida Revista e Corrigida)
“E os que estavam comigo viram, em verdade, a luz, e se atemorizaram muito; mas não ouviram a voz daquele que falava comigo.” (Atos 22.9; Almeida Revista e Corrigida)
Há uma clara contradição entre as duas versões da conversão de Paulo. Afinal, os que acompanhavam Paulo ouviram ou não ouviram a voz de Deus?
Neste caso o texto original grego ajuda a esclarecer a questão e confirma a inspiração verbal da Bíblia.
A explicação
1. Verbo ambíguo
O sentido do verbo grego akouō (“ouvir”) é ambíguo. Akouō às vezes significa “escutar; ouvir e entender o que outra pessoa diz”:
“tudo quanto ouvi (akouō) de meu Pai vos tenho dado a conhecer.” (João 15.15)
Mas também pode significar apenas “ouvir sem entender”. O exemplo mais claro é, possivelmente, Mateus 13.13:
“Por isso, lhes falo por parábolas; porque, vendo, não vêem; e, ouvindo (akouō), não ouvem (akouō), nem entendem.”
2. O contexto define
Em Atos 9.7, o texto diz apenas que aqueles que acompanhavam Paulo ouviram uma voz, mas não viram ninguém. Não informa se entenderam ou não.
Já Atos 22.9 é mais explícito. Ao dizer que os acompanhantes de Paulo “não ouviram”, Atos 22.9 não está dizendo que não ouviram absolutamente nada, mas que não entenderam o que foi dito. Em outras palavras, os companheiros ouviram uma voz, mas sem entender o sentido daquilo que estava sendo dito a Paulo.
3. Dê preferência a traduções melhores
A Almeida Revista e Corrigida e a Almeida Corrigida Fiel (que traduz da mesma maneira que a Revista e Corrigida) são boas traduções da Bíblia. Mas nenhuma tradução é perfeita. No caso em questão, temos traduções melhores de Atos 22.9:
“Os que estavam comigo viram a luz, sem, contudo, perceberem o sentido da voz de quem falava comigo.” (Almeida Revista e Atualizada)
“Os que me acompanhavam viram a luz, mas não entenderam a voz daquele que falava comigo.” (Nova Versão Internacional)
“E os que estavam comigo viram a luz, mas não entenderam a voz daquele que falava comigo.” (Almeida Século 21)
“Os que me acompanhavam viram a luz, mas não entenderam a voz daquele que falava comigo.” (Nova Versão Transformadora)
Conclusão
Para tentar justificar vários erros nos escritos da profetisa Ellen White, a qual os adventistas consideram inspirada por Deus, é comum eles dizerem que a Bíblia também tem erros, uma ideia comum no cristianismo liberal.
Mas a posição clara e histórica dos evangélicos, baseada nos textos acima, é que a Bíblia é inspirada verbal e plenariamente.
Mas não basta crer na inspiração verbal e plenária da Bíblia. É preciso levar a sério a sua mensagem. Caso contrário, você deixará de descobrir o melhor de tudo: que o evangelho traz descanso.
Para quem quer se aprofundar no tema, sugiro o texto A Declaração de Chicago Sobre a Inerrância da Bíblia.
Para refletir
- O que Jesus quis dizer com a frase “as Escrituras não podem falhar”?
- Qual pode ser o resultado de rejeitar a inspiração verbal da Bíblia?
- Como você entende a inspiração da Bíblia?
- Que lugar a Bíblia ocupa em sua vida?
- Por que, aqui no Brasil, IASD não ensina claramente que a Bíblia tem erros?
NOTAS |
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1. Postagem corrigida e atualizada em 2 fev. 2021. Incorretamente o texto informava que a revista Spectrum é a revista oficial dos pastores adventistas. É, na verdade, um órgão de adventistas culturais. Acrescentou-se uma citação da Ministry, essa sim a publicação oficial dos pastores adventistas. 2. Um claro exemplo de erro encontrado nos textos da profetisa adventista é exposto em A conta de Ellen White não fecha. 3. Nisto cremos: as 28 crenças fundamentais da Igreja Adventista do Sétimo Dia (Tatuí: Casa Publicadora Brasileira, 2017). É assim que está escrito na primeira crença fundamental da IASD. Na verdade, a frase está mal traduzida. O correto é “As Escrituras Sagradas são a revelação suprema, oficial e infalível de sua vontade”, pois o texto oficial em inglês diz “The Holy Scriptures are the supreme, authoritative, and the infallible revelation of His will”. Aliás, até textos da Ellen White estão traduzidos erradamente. Mas isso fica para outra postagem. 4. Amin A. Rodor, “A Bíblia e a inerrância”, Kerygma, Vol. 1, nº 1 (2005), p. 26. 5. Isaac Malheiros, “Os Adventistas do Sétimo Dia e o fundamentalismo cristão: Uma avaliação histórica e teológica”, Plura, vol. 7, nº 2 (2016), p. 223. 6. Peter M. van Bemmelen, “Revelação e inspiração”. In: Raoul Dederen, org., Tratado de teologia adventista do sétimo dia, tradução de José Barbosa da Silva (Tatuí: Casa Publicadora Brasileira, 2017), p. 53. 7. Frank M. Hasel, “Are there mistakes in the Bible?”, Ministry, vol. 85, nº 1 (jan. 2013), p. 23 (disponível em https://www.ministrymagazine.org/archive/2013/01/are-there-mistakes-in-the-bible; acesso em 2 mar. 2021). 8. Matthew Quartey, “God is inerrant and infallible; the Bible is neither”, Spectrum, 18 de abril de 2019 (disponível em https://spectrummagazine.org/views/2019/god-inerrant-and-infallible-bible-neither, acesso em 29 dez. 2020). 9. Citado em Marcos Paseggi, “Why Seventh-day Adventists are not fundamentalists”, Adventist News Network, 11 jan. 2018 (disponível em https://adventist.news/en/news/why-seventh-day-adventists-are-not-fundamentalists, acesso em 29 dez. 2020). 10. Os adventistas do sétimo dia se dividem em três grandes grupos: os “evangélicos”, os históricos/tradicionais e os “culturais”. O primeiro grupo é o mais comum no Brasil. O segundo vem crescendo bastante em nossas terras. O terceiro é visto principalmente na Europa, e um pouco também nos Estados Unidos, Canadá e Austrália. De um modo geral, os adventistas “culturais” não têm tanto interesse em questões teológicas. Para esses, o adventismo é mais um estilo de vida e, nesse sentido, a questão de inspiração verbal (inerrância) da Bíblia é assunto irrelevante. 11. Craig L. Blomberg, A confiabilidade histórica dos Evangelhos (São Paulo: Vida Nova, 2019), p. 210-211. 12. Craig L. Blomberg, A confiabilidade histórica dos Evangelhos (São Paulo: Vida Nova, 2019), p. 209. 13. Mark Taylor, 1 Corinthians, New American Commentary, vol. 28 (Nashville, B&H, 2014), p. 285. 14. John Calvin [João Calvino], The John Calvin Bible Commentaries: St. Paul’s First Epistle to the Corinthians (Altenmünster: Jazzybee Verlag Jürgen Beck, s.d.), p. 281. 15. Charles Hodge, Commentary on 1Corinthians (s.l.: Titus Books, 2013), p. 175. |