RESUMO |
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Neemias 9.14: uma pedra no sapato adventista1
O adventista está lendo a Bíblia, chega a Neemias 9.14 e nem percebe a pedra que acaba de entrar no seu sapato. Não é de estranhar. Seus pés já têm tantos calos que ele já se acostumou. Está insensível.
Neemias 9.14 em algumas versões bíblicas
Segue a tradução de Neemias 9.14 em versões protestantes (as 7 primeiras) e católicas (as 5 últimas):
Almeida Revista e Atualizada
“O teu santo sábado lhes fizeste conhecer; preceitos, estatutos e lei, por intermédio de Moisés, teu servo, lhes mandaste.”
Nova Almeida Atualizada
“Tu lhes deste a conhecer o teu santo sábado, e lhes deste mandamentos, estatutos e lei, por meio de teu servo Moisés.”
Almeida Século 21
“Fizeste-os conhecer o teu santo sábado e lhes deste mandamentos, estatutos e leis por intermédio de teu servo Moisés.”
Almeida Revista e Corrigida (e também Almeida Fiel)
“E o teu santo sábado lhes fizeste conhecer; e preceitos, e estatutos, e lei lhes mandaste pelo ministério de Moisés, teu servo.”
Almeida Revisada
“O teu santo sábado lhes fizeste conhecer; e lhes ordenaste mandamentos e estatutos e uma lei, por intermédio de teu servo Moisés.”
Tradução Brasileira
“Fizeste-lhes saber o teu santo sábado, e lhes ordenaste mandamentos e estatutos e uma lei por intermédio de teu servo Moisés.
Nova Versão Internacional
“Fizeste que conhecessem o teu sábado santo e lhes deste ordens, decretos e leis por meio de Moisés, teu servo.”
Edição Pastoral
“Revelaste a eles teu santo sábado, e, por meio do teu servo Moisés, tu lhes deste mandamentos, estatutos e a Lei.”
CNBB
“Revelaste-lhes teu sábado sagrado, lhes deste mandamentos, normas e a Lei, por meio de teu servo Moisés.”
Monges de Maredsous (Centro Bíblico Católico)
“Fizeste-lhes conhecer o vosso santo sábado, e prescreveste-lhes, pela boca de Moisés, vosso servo, os mandamentos, preceitos e uma lei.”
LEB-Loyola
“Tu os fizeste conhecer o teu santo sábado, e prescreveste mandamentos, preceitos e uma Lei, pelo ministério de Moisés, teu servo.”
Bíblia de Jerusalém
“Deste-lhes a conhecer teu santo sábado; prescreveste-lhes mandamentos, estatutos e uma Lei por intermédio de Moisés, teu servo.”
Todas essas 12 traduções bíblicas concordam: Deus mostrou o sábado aos israelitas só depois de terem saído do Egito.
A pedra no sapato
Essas palavras do livro de Neemias fazem parte de uma oração feita por Jesuá e outros 7 levitas na frente de todo o povo judeu (Neemias 9.5).
As palavras deixam bem claro que os israelitas não conheciam o sábado antes de saírem do Egito! Deus revelou o sábado por intermédio de Moisés!
Mas os adventistas insistem em que o sábado sempre foi guardado desde o Éden, desde o sétimo dia da criação. Para os adventistas Adão guardou o sábado, Noé guardou o sábado, Abraão e seu filho Isaque e seu neto Jacó guardaram o sábado. Por outro lado, Neemias 9.14 ensina que os israelitas ficaram sabendo do sábado só depois de saírem do Egito! Essa é a pedra no sapato.
Exegese de Neemias 9.14
Para entender o que exatamente Neemias 9.14 quer dizer e também ter certeza de que as traduções acima estão corretas, temos de examinar três coisas: o próprio versículo, o contexto do versículo e a primeira referência ao sábado na Bíblia. Começaremos examinando o versículo.
A forma verbal הוֹדַעַתָ (hōda`atā)
O texto hebraico de Neemias 9.14 diz:
וְאֶת־שַׁבַּת קָדְשְׁךָ הוֹדַעַתָ לָהֶם וּמִצְווֹת וְחֻקִּים וְתוֹרָה צִוִּיתָ לָהֶם בְּיַד מֹשֶׁה עַבְדֶּךָ׃
O verbo crucial é יָדַע. (yāda`) A ideia básica é “conhecer”. É o sentido que vemos, por exemplo, em Josué 3.10: “Disse mais Josué: Nisto conhecereis que o Deus vivo está no meio de vós”.
Mas aqui em Neemias 9.14 o verbo é o mesmo, mas está em um grau distinto. A forma verbal é הוֹדִיעַ (hôdya`).
Graus verbais hebraicos são maneiras de expressar ideias relacionadas do mesmo verbo. Em português temos o verbo “conhecer”. Mas, quando necessário, usamos mais outro verbo para expressar ideias próximas. É o caso de “ser conhecido”, “fazer conhecer”, “fazer-se conhecer”. Em hebraico é — digamos assim — mais fácil. Cada grau do mesmo verbo indica um sentido específico. Então, יָדַע está no grau básico qal (יָדַע = “ele conheceu”), mas הוֹדִיעַ está no grau hifil, que dá a ideia de “fazer [alguém] conhecer” (הוֹדִיעַ = “ele fez conhecer”).
Em Neemias 9.14 o verbo em questão é a forma hifil הוֹדַעַתָ (= “eles fizeram conhecer”).
Este é, claramente, o sentido do versículo em questão: anteriormente os israelitas não tinham conhecimento do sábado, mas ali Deus lhes deu a conhecer o dia de descanso.
Para não restar dúvida de que esse é mesmo o sentido, vejamos três outros versículos em que se encontramos o verbo יָדַע no grau hifil:
“ensina-lhes os estatutos e as leis e faze-lhes saber o caminho em que devem andar e a obra que devem fazer” (Êxodo 12.20).
“Porque ele estabeleceu um testemunho em Jacó, e pôs uma lei em Israel, e ordenou aos nossos pais que a fizessem conhecer a seus filhos” (Salmos 78).
“Eis que te farei saber o que há de acontecer no último tempo da ira, porque esta visão se refere ao tempo determinado do fim” (Daniel 8.19).
Não há como questionar: o sentido é mesmo de “fazer conhecer” ou “revelar”.
A primeira menção ao sábado na Bíblia
Ao contrário do que muitos acreditam, a primeira menção ao sábado não acontece em Gênesis 2.1-3! Ali só está escrito que Deus cessou sua atividade no sétimo dia e o santificou. A palavra “sábado” nem aparece ali.
A primeira vez que a Bíblia usa a palavra “sábado” é em Êxodo 16. Esse é um texto importantíssimo:
“1E toda a congregação dos filhos de Israel partiu e foi para o deserto de Sim, que fica entre Elim e o Sinai, no décimo quinto dia do segundo mês depois que saíram da terra do Egito. 23… E [Moisés] lhes disse: ‘Isto é o que falou o Senhor: “Amanhã é repouso, santo descanso do Senhor. Assai o que [quiserdes] assar; cozinhai o que [quiserdes] cozinhar”.’ … 25 E disse Moisés: ‘Comei hoje, porque hoje é um descanso para o Senhor. … 26Seis dias colhereis o [maná], mas o sétimo dia é um descanso’. … 27E aconteceu que, no sétimo dia, alguns do povo saíram para colher, porém não o acharam. 28E disse o SENHOR a Moisés: ‘Até quando recusareis guardar meus mandamentos e minhas leis?’ 29Vede que o SENHOR vos deu o descanso. Por isso, ele, no sexto dia, vos dá pão para dois dias. Cada um fique debaixo do seu [lugar]. Ninguém saia de seu lugar no sétimo dia. 30E o povo descansou no sétimo dia.” (Êxodo 16.1, 23, 25-29)
Antes de prosseguirmos, uma explicação: peguei o texto hebraico e fiz uma tradução bem literal desses versículos.2 E, como todos sabem, o sentido original e básico da palavra “sábado” é “descanso”. Por isso, na tradução acima, usei “descanso” em lugar de “sábado”.
Quero fazer quatro observações aqui:
Primeiro, repare que o povo toma conhecimento de que o dia seguinte era “descanso” e recebe instruções sobre como proceder. Qual a necessidade dessa instrução, caso os israelitas já soubessem que não deviam trabalhar no sétimo dia?
Segundo, repare também que essa é a primeira vez que a Bíblia explica que “o sétimo dia é um descanso”. Qual a necessidade de explicar que o sétimo dia era para descanso, caso já soubessem? Nunca antes a Bíblia havia explicado que o sétimo dia era para descanso.
Terceiro, outro detalhe é que a palavra “sábado” aparece quatro vezes. E a expressão “sétimo dia” aparece outras quatro vezes. Nenhuma outra passagem bíblica repete tantas vezes a expressão “sétimo dia”! E a pergunta é: por que simplesmente não usa a palavra “sábado”, mas fica alternando entre as duas expressões?
A resposta óbvia é que, até aquele dia, os israelitas não chamavam o sétimo dia de “sábado”! A repetição tem um objetivo: ensinar que o sétimo dia é o “descanso” (ou “sábado”). E o ensino teve algum resultado, porque as pessoas que, no começo diziam, “no dia de ‘descanso’”, mais tarde encurtaram o nome do dia apenas para “descanso” (isto é, “sábado”).
Quarto, lembre que os israelitas haviam sido escravos no Egito. Acaso escravos tinham algum dia para descansar? A ideia de poderem descansar e ter, a cada sete dias, um dia sem trabalho era inteiramente nova.
O contexto de Neemias 9.14
Igualmente importante é o contexto imediato, isto é, aqueles versículos logo antes e logo depois de Neemias 9.14.
A primeira observação é que esse é um texto poético. Ou, para ser mais específico, é uma oração de confissão em forma de poesia.
A segunda observação é que esse texto menciona acontecimentos importantes da história desde Abraão.
A terceira observação é que esses acontecimentos não são apresentados em ordem cronológica. Segue abaixo uma relação de acontecimentos históricos mencionados na oração e, entre parênteses, a passagem bíblica onde estão registrados:
9.9a: | “viste a aflição de nossos pais no Egito” (Êxodo 3.7) |
9.9b | “e lhes ouviste o clamor junto ao mar Vermelho” (Êxodo 14.10) |
9.10 | “fizeste sinais e milagres contra Faraó” (Êxodo 7.14—11.1; 12.29-30) |
9.11 | “dividiste o mar perante eles” (Êxodo 14.21) |
9.12 | “guiaste-os, de dia, por uma coluna de nuvem e, de noite, por uma coluna de fogo” (Êxodo 13.21; Números 14.14; etc.) |
9.13 | “desceste sobre o monte Sinai, do céu falaste com eles e lhes deste juízos retos, leis verdadeiras, estatutos e mandamentos bons” (Êxodo 20.1—24.29) |
9.14a | “teu santo sábado lhes fizeste conhecer” (Êxodo 16.23, 26) |
9.14b | “preceitos, estatutos e lei, por intermédio de Moisés, teu servo, lhes mandaste” (Levítico—Números 1.1—10.10; 27.1-8; 28.1—30.16) |
9.15a | “pão dos céus [maná] lhes deste na sua fome” (Êxodo 16.14-15; Deuteronômio 8.3-16) |
9.15b | “água da rocha lhes fizeste brotar na sua sede” (Êxodo 17.6) |
9.15c | “e lhes disseste que entrassem para possuírem a terra” (Deuteronômio 1.8-21) |
9.16-17a | “nossos pais … endureceram a sua cerviz e na sua rebelião levantaram um chefe, com o propósito de voltarem para a sua servidão no Egito” (Números 14.1-4) |
9.18 | “fizeram para si um bezerro de fundição” (Êxodo 32.4) |
Repare que o clamor do povo às margens do mar Vermelho depois aconteceu dos milagres e sinais feitos contra o faraó, mas em Neemias 9 esse acontecimento aparece antes. Outros itens também estão fora de ordem cronológica.
A quarta observação é que o autor bíblico usa de um recurso estilístico para destacar a importância do sábado. Coloca o sábado bem no meio entre os estatutos dados diretamente pelo Senhor (destaque-se Êxodo 21.1; o texto dos estatutos está em 21.2—23.33) e os estatutos dados por intermédio de Moisés (legislação mosaica posterior, dada após a construção do tabernáculo). Esse recurso tem o nome técnico de quiasmo (ou paralelismo invertido) e é usado um enorme número de vezes no Velho Testamento.
Resumindo, Neemias 9.14 faz parte de um texto poético bastante longo que relembra acontecimentos da história israelita, mas não os coloca em ordem cronológica exata, e o próprio versículo emprega um recurso estilístico para destacar o sábado.
Em outras palavras, o texto não está dizendo que o sábado foi revelado no monte Sinai. As leis sobre o sábado foram, estas sim, reveladas no Sinai, mas o sábado, conforme vimos acima, foi revelado quando o povo estava no deserto de Sim (Êxodo 16.1), semanas antes de chegar ao monte Sinai.
E as versões divergentes?
Das quatro versões abaixo, as duas primeiras são paráfrases. As duas últimas seguem o princípio tradutório de equivalência dinâmica.
O princípio básico das paráfrases é que o texto não é tão literal. Usam de certa liberdade na tentativa de deixar o texto mais claro, mas o grande risco é dizer algo que não está no texto. E é o que aconteceu aqui em Neemias 9.14.
A equivalência dinâmica é o princípio de, quando o tradutor julgar necessário, evitar a tradução literal. Em seu lugar, empregam-se palavras e expressões que procuram ser mais claras para o leitor. Corre o mesmo risco das paráfrases: dizer algo que não está no texto.
Bíblia Viva
“O Senhor desceu sobre o monte Sinai e falou com eles desde o céu, dando a eles boas Leis e verdadeiros mandamentos, inclusive as Leis sobre o descanso santo; também deu ordem a eles, por intermédio do seu servo Moisés, para que obedecessem a todos os mandamentos”. (Neemias 9.13-14)
Comentário: A Bíblia Viva deixa claro que os israelitas ainda não tinham nenhuma lei sobre o descanso santo. Então a guarda do sábado ainda não era obrigatória. Repare a troca da palavra “sábado” por “descanso santo”. Mas essa troca não é problema, porque a Bíblia Viva não é uma tradução literal.
A Mensagem
“Ensinaste o teu povo a guardar os teus sábados santos. Por meio do teu servo Moisés, deste a eles mandamentos, regras e instruções.”
Comentário: O texto é ambíguo. Pode significar que os israelitas não tinham nada sabiam da guarda do sábado, como também pode significar que já conheciam o sábado, mas só agora foram ensinados a guardá-los. Note que o tradutor fez outra mudança no texto: colocou “sábado” no plural. Mas, por ser paráfrase, isso pode ser aceitável.
Nova Tradução na Linguagem de Hoje (e também Bíblia na Linguagem de Hoje)
“Tu lhes disseste que santificassem o sábado e lhes deste as tuas leis por meio do teu servo Moisés.”
Comentário: A Nova Tradução na Linguagem de Hoje e a Bíblia na Linguagem de Hoje (os textos são exatamente iguais) são as duas versões que mais se afastam do sentido original, pois o Neemias 9.14 não fala de santificar o sábado, mas de tornar conhecido o santo sábado.
Nova Versão Transformadora
“Tu os instruíste a respeito de teu sábado santo. Ordenaste, por meio de teu
servo Moisés, que obedecessem a teus mandamentos, decretos e leis.”
Comentário: Essa tradução é ambígua. Os dois sentidos possíveis são: 1) os israelitas já conheciam o sábado e receberam instrução adicional a respeito; 2) os israelitas não sabiam nada sobre o sábado e foram pela primeira vez ensinados sobre o assunto.
Alegações adventistas
“Lembra-te…”
Adventistas alegam que o “lembra-te do dia de sábado para o santificar” (Êxodo 20.2; Deuteronômio 5.12) indica que já havia sábado, pois não faz sentido dizer a alguém para se lembrar de algo que não existe.
Acontece que essa não é a única interpretação possível da frase. Ela pode ser entendida de pelo menos outras duas maneiras:
- Um possível significado é “não se esqueçam do dia de descanso”. É como se o texto estivesse dizendo: “É fácil a gente se distrair com outros assuntos, por isso, não se esqueçam do dia de descanso”.
- Outra interpretação é que o verbo “lembrar” se refere à ordem recebida pelos israelitas um pouco antes, quando ainda estavam no deserto de Sim: “Seis dias colhereis [maná], mas o sétimo dia é um descanso’. … Vede que o SENHOR vos deu o descanso. Por isso, ele, no sexto dia, vos dá pão para dois dias. Cada um fique debaixo do seu [lugar]. Ninguém saia de seu lugar no sétimo dia.” Essa é a primeira menção a dia de descanso na Bíblia. É a interpretação que eu adoto.
“Neemias 9.14 trata da entrega da lei escrita”
Tem adventista que, para fugir da pedra no sapato, alega que Neemias 9.14 está apenas relembrando a entrega da lei escrita e não o surgimento da lei de Deus.
É um argumento que ignora totalmente o verbo usado por Neemias, cujo sentido, conforme visto acima, é “fazer conhecer, dar a conhecer, revelar”.
A quem apresenta essa alegação, eu pergunto: que relação “revelar o sábado” (ou, mais literalmente, “revelar o descanso”) tem com entrega da lei escrita? Nenhuma!
Conclusão
As versões bíblicas mais literais são claras.
As versões divergentes, isto é, menos literais, obscurecem o sentido do texto.
E o exame do verbo hebraico, do seu contexto e de Êxodo 16.23-30 resolve definitivamente a questão: antes dos israelitas liderados por Moisés, ninguém chegou a conhecer o sábado.
Para refletir
- Das 12 versões que ensinam que os israelitas só conheceram o sábado no deserto, qual é a mais clara?
- Qual das 4 versões divergentes é a mais confusa?
- Por que os adventistas insistem que Noé, Abraão e todos os crentes que viveram antes de Moisés guardavam o sábado?
NOTAS |
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1. Apesar do assunto bastante técnico, esta postagem é feita com toda tranquilidade. Lecionei hebraico por mais de 15 anos em três diferentes faculdades de teologia. 2. Ao longo da vida estive envolvido na tradução e/ou revisão de algumas versões da Bíblia para o português (Nova Versão Internacional, Almeida Século 21, Bíblia Viva, Cartas para Hoje), o que me deixa à vontade para avaliar traduções bíblicas. Claro que não sou infalível, mas, se alguém quiser contestar esta postagem, terá de usar argumentos técnicos tanto de linguística quanto de hebraico. |