
RESUMO |
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Profecia sobre guarda compulsória do domingo1
Obcecada com o sábado, Ellen White fez a curiosa profecia de uma futura lei sobre o domingo, o tal do decreto dominical:
No conflito final o sábado será o ponto central de conflito em toda a cristandade. Governantes seculares e líderes religiosos se unirão para impor a observância do domingo; e, quando medidas mais moderadas falharem, serão decretadas as leis mais opressivas. Haverá pressão para que não se tolerem os poucos que se opõem a uma instituição da igreja e a uma lei da terra; e por fim será emitido um decreto que … dará às pessoas a liberdade de … matá-los.2
De acordo com a Ellen, esses líderes religiosos serão católicos e protestantes.
“Procurado vivo ou morto”
Para entender essa profecia, é preciso voltar na história e ver como era a vida nos Estados Unidos em pleno século 19.
Naquele tempo, nos Estados Unidos, como em muitos outros lugares, era aceitável pessoas fazerem justiça com as próprias mãos. Você chegou a assistir filmes de faroeste em que apareciam aqueles cartazes “Procurado Vivo ou Morto”?
Funcionava da seguinte maneira. Você, armado com um revólver, encontrava alguém procurado pela justiça. Você tinha o direito de prender a pessoa e ganhar uma polpuda recompensa em dinheiro. Se a pessoa resistisse, você podia, sem nenhum problema, atirar na pessoa e apresentar o cadáver para receber a recompensa.
Então, por que vivia naquela época, foi bastante natural Ellen White imaginar uma lei futura obrigando as pessoas a guardarem o domingo, sob pena de os violadores serem mortos.
Os Estados Unidos e o mundo hoje
Só que o mundo mudou. E isso cria uma baita dificuldade para os adventistas.
Os amigos adventistas estão em dificuldade porque os Estados Unidos sofreram uma transformação tão grande que o domingo virou um dia como praticamente outro qualquer: shopping centers abertos, supermercados abertos, lojas abertas, cinemas abertos, etc. (O Brasil e um grande número de países seguiram atrás.) Com raras exceções, ninguém dá a mínima para a guarda do domingo.
Quando analisam esse fenômeno, sociólogos e também antropólogos dizem que é consequência do mundo pluralista em que vivemos, isto é, de um mundo com ideias e crenças variadas que existem lado a lado, sem que uma seja mais importante do que as demais.
E em um mundo pluralista uma lei que obrigue a guarda do domingo simplesmente não faz sentido.E é preciso lembrar que, devido à constante imigração, hoje os Estados Unidos são cada vez mais pluralistas.
Nesse pluralismo nos Estados Unidos há grande número de muçulmanos, que cultuam na sexta-feira; de judeus e cristãos sabatistas (adventistas e outros) que guardam o sábado; muitos cristãos que reservam o domingo como um dia especial; além de ateus, hindus e praticantes de outras crenças, para os quais nenhum dia é importante. Uma futura lei sobre o domingo é impensável, é inviável.
Vale lembrar que muitos seguidores de Jesus consideram desnecessária e até mesmo errada a guarda do domingo ou de qualquer outro dia. Eles se baseiam em algo que o apóstolo Paulo escreveu aos Romanos, e, por isso, para eles o domingo não é um dia de guarda. (Paulo disse: “Um faz diferença entre dia e dia; outro julga iguais todos os dias. Cada um tenha opinião bem definida em sua própria mente”; Romanos 14.5.)
Hoje os EUA são uma nação pagã com origens cristãs. No século 19 a guarda do domingo era lei em vários lugares. Hoje, na melhor das hipóteses, é compulsória em pouquíssimas cidadezinhas. Os Estados Unidos mudaram, e a Ellen não conseguiu prever isso.
O papa. Ah!, sempre o papa
A esta altura é preciso lembrar de outro detalhe. O arqui-inimigo do adventismo é o catolicismo, que teria criado a guarda do domingo. Uma das profecias de Ellen White é que, no final dos tempos, as várias igrejas protestantes se uniriam ao catolicismo para criar uma lei que tornasse o domingo o dia obrigatório de adoração.
Mas Ellen White foi também incapaz de prever mudanças na Igreja Católica. Aqui nos interessa uma decisão tomada no Concílio Vaticano II, realizado pela Igreja Católica na década de 1960.
De acordo com a Igreja Católica, nos dias de hoje as missas celebradas no sábado valem por aquilo que os católicos chamam de “preceito dominical”, isto é, a obrigação do domingo. Explico. O católico tem o dever de participar da missa do domingo. Mas, desde o Concílio Vaticano II, a Igreja Católica considera que o fiel que for a uma missa de sábado já terá cumprido seu dever dominical! Em outras palavras, se for à missa no sábado, o católico está liberado para fazer o que quiser no domingo.
Quem diria que a Igreja Católica nem iria mais considerar o domingo tão importante assim! Pois é, nem para a Igreja Católica é necessária essa futura lei sobre o domingo.
Teólogos adventistas e o decreto dominical
Houve tempo em que todos os adventistas acreditavam na profecia da Ellen de uma futura lei sobre o domingo. Hoje não mais. Até mesmo teólogos, pastores e professores de seminários e faculdades de teologia não acreditam!!!
Reinder Bruinsma
Outro destacado líder adventista que não aceita a profecia da Ellen é Reinder Bruinsma, que chegou a ser presidente da Igreja Adventista do Sétimo Dia da Bélgica e Luxembergo. Ele é pregador, conferencista e escritor, tendo alguns de seus livros sido publicados pelas mais importantes editoras adventistas.3 Ele escreve:
A expectativa de … um decreto dominical universal … parece cada vez mais irrealista. … Os adventistas tem de se perguntar: será que a Bíblia prediz claramente um tempo em que serão impostas leis dominicais impiedosas? Devemos perceber que esse cenário dominical se baseia principalmente na interpretação das profecias do Apocalipse feitas por Ellen White … Para mim, isso significa que temos de rever nosso conceito de inspiração. Ellen White escreveu seu livro The great controversy [O grande conflito] no final do século 19, no contexto de circunstâncias que prevaleciam nos Estados Unidos. … Ela vivia numa época em que os políticos estaduais e nacionais faziam tudo o que podiam para impor a observância do domingo. … No entanto, o mundo dela já não existe. A “grande narrativa” por trás do “grande conflito” entre as forças do bem e do mal … se desenrola de formas bem diferentes em nossa sociedade secular, que tem uma composição religiosa e cultural totalmente diferente. Cabe a nós discernir como essa ‘grande controvérsia’ se desenrola no nosso mundo ocidental do século 21. O grande desafio para os adventistas, que guardam o sábado, não é continuar falando de uma situação de final dos tempos cada vez mais implausível… Não desperdicemos nossas energias, tentando forçar a situação irrealista de um decreto dominical.4
É bom lembrar que Reinder Bruinsma não é um teólogo qualquer. Além de ter inúmeros livros publicados por editoras adventistas, foi o autor das lições da escola sabatina do 2º trimestre de 2009, que foram publicadas em português pela Casa Publicadora Brasileira.

Jon Paulien
“O Decreto Dominical não se aplica mais à realidade atual e precisa ser revisado à luz da complexidade da ação divina para iluminar questões mais importantes sobre o tempo do fim.”5
Quem disse essas palavras chocantes foi professor de Interpretação do Novo Testamento no Seminário Teológico da Universidade Adventista de Andrews, que é a mais importante universidade adventista. Também foi reitor da Universidade Adventista de Loma Linda de 2007 a 2019, a segunda mais importante universidade adventista. Atualmente é professor dessa universidade.
E num tweet o mesmo Paulien fez a seguinte afirmação, também chocante:
“Para os adventistas do sétimo dia, a certeza sobre o decreto dominical do final dos tempos está baseada nas declarações claras e diretas de Ellen White (O grande conflito, p. 573, 579 e 592) e não numa exegese do texto de Apocalipse.”6
Paulien é outro que não é um ilustre desconhecido no mundo adventista. Escreveu vários livros que foram publicados por editoras adventistas, inclusive a Casa Publicadora Brasileira. Um desses livros é Deus no mundo real, que você pode comprar diretamente do site da CPB.

Correção: Samuele Bacchiocchi
Eu havia dito que Samuele Bacchiocchi, renomado teólogo adventista e professor de teologia na Universidade de Andrews, nos Estados Unidos, a mais importante instituição educacional da Igreja Adventista do Sétimo Dia, rejeitou o decreto dominical. Um adventista leu esta postagem e questionou minha declaração sobre Bacchiocchi. Ele estava certo.
Foi uma interpretação equivocada de minha parte.7 Bacchiocchi, falecido alguns anos atrás, acreditava, sim, no decreto dominical.
Uma curiosidade: o adventista acertou ao mostrar meu erro quanto ao Bacchiocchi, mas ficou calado sobre a posição de Bruinsma e de Paulien. Isso mostra que esse e outros adventistas são seletivos na hora de defender sua religião: escolhem aquilo que acham que dá para defender e ficam quietinhos quando não têm argumento.
[Correção feita em 17 de setembro de 2022.]Conclusão
Os adventistas mais teimosos não vão admitir, mas essa “profecia” de um futuro decreto dominical era uma ilusão viável em 1880, mas inviável hoje.
Para refletir
- Os adventistas não costumam seguir as instruções do Velho Testamento sobre o sábado. Por exemplo, na lei de Moisés havia clara determinação de não acender fogo no sábado (Êxodo 35.3), mas parece que as donas de casa adventistas nunca leram essa ordem (ou pelo menos não dão valor a ela). No imaginário decreto dominical as pessoas teriam de obedecer no domingo todas as ordens que Deus deu para o sábado?
- Que outras coisas funcionam aqui no Brasil no domingo e mostram que as pessoas não estão nem aí com a guarda desse dia?
- Que mudança ocorrida nos Estados Unidos desde a época da Ellen White que mostra que a “profecia” sobre o domingo não faz mais sentido?
- E qual a mudança que ocorreu na Igreja Católica Romana sobre a guarda do domingo?
- Por que a Igreja Adventista do Sétimo Dia se cala quando alguns de seus teólogos dizem que não acreditam num decreto que impõe a guarda obrigatória do domingo, o tal do decreto dominical?
NOTAS |
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1. Esta postagem se baseou em The big book of Ellen G. White errors: 200 amazing errors the SDA church hopes you never discover about the writings of Ellen G. White, by Earl W. Pickett Jr. (s.l.: Ready with a Word Bible Publishers, 2013), p. 95-96. Postagem atualizada em 12 mar. 2021 e 25 jun. 2021. 2. Original: “In the last conflict the Sabbath will be the special point of controversy throughout all Christendom. Secular rulers and religious leaders will unite to enforce the observance of the Sunday: and as milder measures fail, the most oppressive laws will be enacted. It will be urged that the few who stand in opposition to an institution of the church and a law of the land ought not to be tolerated and a decree will finally be issued …, and giving the people liberty … to put them to death.” (Maranatha [Maranata — O Senhor vem!], p. 188). 3. Livros de Bruinsma têm sido publicados por várias editoras adventistas, inclusive a Pacific Press, a Review and Herald e a Andrews University Press. Bruinsma tem seu próprio site: http://reinderbruinsma.com. 4. Seguem os principais trechos do texto de Bruinsma. “No entanto, a expectativa de que no final dos tempos um decreto dominical universal seja imposto pelas autoridades civis, por insistência do público e a pedido das igrejas ‘apóstatas’, parece ser cada vez mais irrealista. … “Os adventistas tem de se perguntar: será que a Bíblia prediz claramente um tempo em que serão impostas leis dominicais impiedosas? Devemos perceber que esse cenário dominical se baseia principalmente na interpretação das profecias do Apocalipse feitas por Ellen White em seu livro The great controversy [O grande conflito]. Para alguns isto significa que, apesar de tudo o que se vê hoje, as leis dominicais estão chegando, porque ‘Ellen White diz isso!’. Para outros, isso significa que Ellen White estava errada e que, por isso, não tem condições de ser um farol profético para os crentes adventistas. “Para mim, isso significa que temos de rever nosso conceito de inspiração. “Ellen White escreveu seu livro The great controversy no final do século 19, no contexto de circunstâncias que prevaleciam nos Estados Unidos. Seu mundo estava dividido entre católicos romanos e protestantes. Ela pertencia a uma pequena seita adventista que não era bem aceita. Ela vivia numa época em que os políticos estaduais e nacionais faziam tudo o que podiam para impor a observância do domingo. Ela viu como em alguns estados aqueles que guardavam o sábado foram, de fato, postos na prisão! “No entanto, o mundo dela já não existe. A ‘grande narrativa’ por trás do ‘grande conflito’ entre as forças do bem e do mal sempre foi e sempre continuará válida. Mas essa narrativa se desenrola de formas bem diferentes em nossa sociedade secular, que tem uma composição religiosa e cultural totalmente diferente. Cabe a nós discernir como essa ‘grande controvérsia’ se desenrola no nosso mundo ocidental do século 21. “O grande desafio para os adventistas, que guardam o sábado, não é continuar falando de uma situação de final dos tempos cada vez mais implausível, mas convencer os nossos concidadãos de que existe um imensurável benefício religioso, social e de saúde quando se respeita o ritmo, dado por Deus, de seis tempos mais um tempo. O homem foi criado com um relógio interno, e ele será prejudicado, se não respeitar isso. O sábado continua sendo nosso melhor antídoto contra o estresse e o esgotamento e nosso melhor meio de recuperar a força moral. É o instrumento divinamente ordenado para recarregar nossas baterias espirituais e para nos (re)conectar com Deus e com as pessoas que nos são queridas. “Não desperdicemos nossas energias, tentando forçar a situação irrealista de um decreto dominical, mas promovamos e exemplifiquemos uma vida na qual o descanso sabático, que faz parte da criação de Deus, está no centro do palco.” (Reinder Bruinsma, “Are Sunday laws coming?”, Adventist Today, 7 dez. 2018. Disponível em: https://atoday.org/are-sunday-laws-coming/. Acesso em 13 mar. 2020.) 5. Jon Paulien, “Série Decreto Dominical (parte 1)”, tradução e adaptação para o português de André Kanasiro, revista Zelota, disponível em https://revistazelota.com/como-deus-atua-no-mundo/, acesso em 12 mar. 2021. 6. Disponível em https://twitter.com/JonPaulien/status/1274351623263809537/, acesso em 25 jun. 2021. 7. O texto que interpretei equivocadamente como rejeição do decreto dominical é: “O grande confronto do final dos tempos não é … sobre Domingo versus Sábado, Primeiro Dia versus Sétimo Dia, mas sobre o que esses dois dias representam: adoração centrada no eu versus adoração centrada em Deus. É nesse contexto que a MARCA E O NÚMERO DA BESTA devem ser entendidos”. (Original: “The endtime showdown is not about … Sunday versus Sabbath, First Day versus Seventh-day, but about what these two days represent: Self-centered worship versus God-centered worship. It is within this context that THE MARK AND NUMBER OF THE BEAST must be understood.” (Destaque e palavras em maiúscula no original. Inicialmente encontrado em http://biblicalperspectives.com/endtimeissues/et_139.htm. Disponível em https://web.archive.org/web/20180319124711/biblicalperspectives.com/endtimeissues/et_139.htm. Acesso em: 5 fev. 2020.) |