RESUMO |
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Introdução
“Ninguém, pois, vos julgue por causa de comida e bebida, ou dia de festa, ou lua nova, ou sábados, porque tudo isso tem sido sombra das coisas que haviam de vir.” (Colossenses 2.16-17)
Esses dois versículos são parte da carta que o apóstolo Paulo escreveu aos cristãos que moravam em Colossos, uma cidade situada na Anatólia, região da Turquia. Essas palavras são uma pedra no sapato dos adventistas. É que elas jogam por terra duas doutrinas fundamentais do adventismo: a guarda do sábado e o vegetarianismo.
Paulo está ensinando que o cristão não está mais obrigado a guardar o sábado nem a seguir regras alimentares. O motivo apresentado por Paulo é simples: o sábado e as regras alimentares eram sombra de uma realidade que já se concretizou.
Para entender bem Colossenses 2.16-17, vale a pena ler a passagem toda, isto é, dos versículos 8 a 23:
“8Cuidado que ninguém vos venha a enredar com sua filosofia e vãs sutilezas, conforme a tradição dos homens, conforme os rudimentos do mundo e não segundo Cristo; 9porquanto, nele, habita, corporalmente, toda a plenitude da Divindade. 10Também, nele, estais aperfeiçoados. Ele é o cabeça de todo principado e potestade. 11Nele, também fostes circuncidados, não por intermédio de mãos, mas no despojamento do corpo da carne, que é a circuncisão de Cristo, 12tendo sido sepultados, juntamente com ele, no batismo, no qual igualmente fostes ressuscitados mediante a fé no poder de Deus que o ressuscitou dentre os mortos.
“13E a vós outros, que estáveis mortos pelas vossas transgressões e pela incircuncisão da vossa carne, vos deu vida juntamente com ele, perdoando todos os nossos delitos; 14tendo cancelado o escrito de dívida, que era contra nós e que constava de ordenanças, o qual nos era prejudicial, removeu-o inteiramente, encravando-o na cruz; 15e, despojando os principados e as potestades, publicamente os expôs ao desprezo, triunfando deles na cruz.
“16Ninguém, pois, vos julgue por causa de comida e bebida, ou dia de festa, ou lua nova, ou sábados, 17porque tudo isso tem sido sombra das coisas que haviam de vir; porém o corpo é de Cristo. 18Ninguém se faça árbitro contra vós outros, pretextando humildade e culto dos anjos, baseando-se em visões, enfatuado, sem motivo algum, na sua mente carnal, 19e não retendo a cabeça, da qual todo o corpo, suprido e bem vinculado por suas juntas e ligamentos, cresce o crescimento que procede de Deus.
“20Se morrestes com Cristo para os rudimentos do mundo, por que, como se vivêsseis no mundo, vos sujeitais a ordenanças: 21não manuseies isto, não proves aquilo, não toques aquiloutro, 22segundo os preceitos e doutrinas dos homens? Pois que todas estas coisas, com o uso, se destroem. 23Tais coisas, com efeito, têm aparência de sabedoria, como culto de si mesmo, e de falsa humildade, e de rigor ascético; todavia, não têm valor algum contra a sensualidade.”
O contexto: a heresia que ameaçava os Colossenses
Assim como hoje em dia, na época de Paulo existiam vários “judaísmos”. Naquela época havia o grupo dos fariseus, o dos saduceus, o dos herodianos, o dos essênios e assim por diante. Cada ramo do judaísmo tinha ideias e práticas próprias.
E, quando Paulo escreveu aos cristãos da cidade de Colossos, havia naquela cidade um grupo de judeus que vinha pressionando os cristãos. Eles queriam que os cristãos guardassem o sábado e tomassem certos cuidados com alimentação, além de outras coisas. Era uma heresia que ameaçava a igreja em Colossos.
Então Paulo adverte aqueles cristãos contra aquilo que ele chama de “filosofia” (v. 8). O contexto deixa claro que essa era uma “filosofia” de natureza religiosa, uma heresia de origem judaica, que pregava:
- a circuncisão física (v. 11)
- abstinência de certas comidas e bebidas, a guarda das festas anuais e mensais e dos sábados dos judeus (v. 16)
- regras sobre o que o se podia tocar ou experimentar (v. 21)
- ascetismo (v. 23)
- e até mesmo um “culto dos anjos” (v. 17), sobre o qual falarei mais abaixo.
Entendendo algumas expressões
Ao longo dessa passagem da Carta aos Colossenses aparecem algumas palavras ou expressões que precisamos entender.
“Dia de festa, ou lua nova, ou sábados”
“Ninguém … vos julgue por causa de … dia de festa, ou lua nova, ou sábados.” (Colossenses 2.16)
A expressão “dia de festa, luz nova e sábados” é típica do Velho Testamento. É uma confirmação indireta de que Paulo está tratando de uma forma de judaísmo.
Vejamos o que diz o Anchor Bible dictionary [Dicionário bíblico Anchor]. Não é um dicionário qualquer, mas o mais completo dicionário bíblico já produzido, com mais de 7.000 páginas distribuídas em 6 volumes. Foi escrito por estudiosos protestantes, católicos e até adventistas. E, justamente para escrever o verbete “Sabbath” (“sábado”), convidaram o adventista Gerhard Hasel, a quem tive o privilégio de conhecer em 1993.1 Veja o que ele escreveu:
“No Velho Testamento o termo ‘festas’ (ḥag) designa apenas as festas anuais, a designação ‘luas novas’ (ḥōdeš) é de uma celebração mensal, e ‘sábados’ (šabbāt) são, por conseguinte, celebrações semanais. A ordem é claramente de um número crescente de celebrações na sequência das menos frequentes para as mais frequentes, isto é, anuais–mensais–semanais.”2
Esse jeito do Velho Testamento de se referir às festas israelitas/judaicas ocorre, por exemplo, em Ezequiel 45.17 (“nas festas, e nas luas novas, e nos sábados”)3 e Oseias 2.11 (“suas festas anuais, suas luas novas, seus sábados”).4
E essa sequência de celebrações — das menos frequentes para as mais frequentes — é justamente o que encontramos em Colossenses 2.16: “dia de festa, ou lua nova, ou sábados”.
Então, em Colossenses 2.16, Paulo está usando uma expressão típica do Velho Testamento para se referir a todas as celebrações judaicas, até mesmo o sábado semanal.
“Sábado” ou “sábados”?
“Ninguém… vos julgue por causa … sábados.” (Colossenses 2.16)
Para entender a questão, é preciso considerar a tradução do Velho Testamento usada por Paulo. Ela é mais conhecida pelo nome de Septuaginta. É uma tradução do Velho Testamento do hebraico (a língua original) para o grego e foi feita por judeus.
O quarto mandamento, como todos devem saber, diz: “Lembra-te do dia do sábado para o santificar”. Mas em grego, na Septuaginta, é, literalmente, “Lembra-te do dia dos sábados [σαββάτων] para o santificar”! O sentido é o mesmo, mas em grego usa-se o plural!
Outro exemplo é Oseias 2.11. No hebraico diz literalmente “sua festa, sua lua nova e seu sábado”, mas na tradução em grego (Septuaginta) as palavras são “suas festas anuais, suas luas novas, seus sábados”.
Além do mais, todas as outras vezes que a palavra “sábado” aparece no Novo Testamento, está se referindo sempre ao sétimo dia da semana, nunca às várias festas dos judeus.
Essa é outra confirmação de que, em Colossenses 2.16, “sábados” se refere ao sétimo dia da semana.
“Bebida”
“Ninguém … vos julgue por causa de … bebida.” (Colossenses 2.16)
Para os gentios, o que caracterizava os judeus era a guarda do sábado e de outros dias e também a cuidadosa abstinência de certos alimentos. Nesse caso, onde se encaixa o item “bebida”, mencionado em nossa passagem de Colossenses? O teólogo James Dunn responde à pergunta:
“Embora a questão de bebida não fosse tão importante quanto a do alimento puro em contraste com o impuro, era bem natural que judeus escrupulosos (em particular os da diáspora) também se abstivessem de bebida por causa da possibilidade de lhes darem de beber vinho que havia sido oferenda de bebida feita aos deuses e que, por esse motivo, também estava contaminado pela idolatria.”5
Essa é outra indicação de que Colossenses 2.16 está falando de práticas judaicas.
“Culto dos anjos”
“Ninguém se faça árbitro contra vós outros, pretextando … culto dos anjos.” (Colossenses 2.18)
Os comentaristas reconhecem que essa é uma expressão bem difícil de entender. Clinton Arnold estudou a questão em profundidade e até escreveu um livro só sobre o assunto.6 Ele diz:
“Embora alguns tenham sugerido que precisamos interpretar que a expressão se refere a anjos cultuarem, faz mais sentido entender os anjos como o objeto da veneração. Ao que parece, o grupo em Colossos está invocando a ajuda e proteção de anjos contra espíritos malignos. Era assim que as pessoas costumavam buscar os anjos no século primeiro — no judaísmo popular, na crença popular local e, mais tarde, mesmo em segmentos do cristianismo primitivo.”7
Então, o que muito provavelmente aconteceu em Colossos é os falsos mestres pregarem um judaísmo que incluía a invocação de anjos.
Mas, independentemente de qual o sentido exato da expressão “culto dos anjos”, não tem como negar que Colossenses 2 trata de algum grupo judaizante que pregava a lei. O contexto deixa isso claro.
“Rigor ascético”
“Tais coisas … têm aparência … de rigor ascético.” (Colossenses 2.23)
É a crença de que, para chegar a Deus, é necessário tratar o corpo com dureza. Em outras palavras, a ênfase está na disciplina e no autocontrole. É um tipo de salvação pelas obras.
Dois versículos antes, Paulo já havia apontado para o rigor com o corpo, ao citar o tipo de regras impostas pelos proponentes da heresia judaizante: “não manuseies isto, não proves aquilo, não toques aquiloutro” (Colossenses 2.21).
No judaísmo o rigor ascético era visto, por exemplo, na prática do jejum. Na Parábola sobre o Fariseu e o Publicano, a oração do fariseu é de alguém que se priva de comida por achar que isso agrada a Deus: “Ó Deus, graças te dou porque … jejuo duas vezes por semana” (Lucas 18.11-12).
A abstinência de certos alimentos com o objetivo de agradar a Deus que é outra forma de rigor ascético. É por isso que, em 1Timóteo 4.3, Paulo condena aqueles que exigem a abstinência de alimentos.
O que os estudiosos dizem sobre Colossenses 2
Ao longo da história da igreja muitos cristãos têm comentado sobre Colossenses 2. Segue o que disseram alguns deles:
João Calvino, reformado
“Não guardamos dias de forma alguma, como se houvesse qualquer sacralidade em dias especiais ou como se não fosse legítimo trabalhar neles.”8
Ben Witherington III, metodista
“Paulo está dizendo … que os crentes não devem deixar ninguém julgá-los com base em regras alimentares, festas ou exigências de sábado. Os cristãos não estão debaixo dessas regras do Velho Testamento. Pelo contrário, são criaturas da nova aliança. É fugir do assunto afirmar que Paulo quis dizer que os crentes não guardam mais o sábado da maneira que os falsos mestres estavam sugerindo. Pelo contrário, Paulo está dizendo: ‘ninguém os leve a se sujeitar a leis alimentares ou a normas de sábado’.”9
Richard R. Melick Jr., batista
“Paulo proibiu veemente os cristãos de Colossos de se submeterem a essas regras. Essas coisas podem parecer espirituais, mas a vida espiritual é uma questão de relacionamento com Cristo e de compromisso do coração com ele. Considerar que essas questões são necessárias à vida cristã iria comprometer a obra de Jesus. Se o esforço humano for eficaz, a obra de Deus é desnecessária.” 10
James D. G. Dunn, anglicano
“Aqueles que insistem em ter um estilo de vida mais restrito agem assim porque consideram esse estilo de vida uma expressão essencial de sua crença e identidade como crentes. Eles obedecem a isso porque acham que Deus exige essa obediência. É inevitável que essa convicção os levará a criticar ou mesmo condenar aqueles que afirmam ter a mesma lealdade à fé fundamental, mas que praticam um estilo de vida menos restrito. Se Deus exige obediência, então desaprova a não obediência, e aqueles que ignoram as exigências de Deus devem ser condenados e evitados, apesar de afirmarem ter a mesma fé fundamental. Essa era a lógica do judeu devoto e tradicionalista, inclusive do judeu cristão tradicionalista. É muito provável que seja essa atitude que se tem em vista aqui, que é considerada mais perigosa do que a atitude equivalente criticada em Romanos 14.”11
Horatius Bonar, presbiteriano
“Embora repletos de significado, esses ritos e festas não eram nada em si mesmos; não existiam independentemente de algo além deles, para o qual apontavam. Eram imagens, estátuas, sombras — nada mais do que isso. Não eram a substância; não eram o corpo ou a pessoa; eram, tal como João Batista, uma voz que clamava no deserto; eram amigos do Noivo, mas não o próprio Noivo; diziam: ‘Não olhem para mim, mas para Aquele para quem olhamos; não nos admirem, mas admirem Aquele que é o nosso Alfa e Ômega, o nosso princípio e o nosso fim’.”12
Marianne Meye Thompson, presbiteriana
“A observância mencionada aqui — de festas, luas novas e sábados —, quando combinadas com outras práticas, tais como jejum e negação de si mesmo, sugerem que os falsos mestres estavam instigando estas práticas não como meio de iniciação no corpo de Cristo, mas como práticas a serem seguidas após essa iniciação, práticas que visavam iniciar a pessoa em outra esfera de experiência espiritual.”13
Bíblia de Estudo Conselheira (Sociedade Bíblica do Brasil)
“[Nós, os crentes,] estamos autorizados pelas Escrituras, com base na suficiência do sacrifício de Cristo, a resistir a qualquer tentativa de cerceamento de nossa livre relação com Deus. Pelo fato de o cristão já ter morrido junto com Cristo, todas essas regras perderam completamente o sentido. Tradições ancestrais, culturais, religiosas, leis políticas, pensamentos sofisticados, argumentos de pessoas carismáticas, costumes, tudo isto não tem valor perante Jesus. Cristo não precisa de ajudantes. Sua morte e ressurreição são suficientes para nos santificar.”14
Clinton E. Arnold, batista
“Uma festa religiosa, uma celebração da Lua Nova ou um dia de sábado. Essas são observâncias distintamente judaicas encontradas repetidamente juntas no Velho Testamento e defendidas ardorosamente pelos proponentes da ‘filosofia colossense’. Em Josefo e em inscrições encontramos prova de que a observância do Sábado era importante para os judeus da Ásia Menor. … As festas e observâncias judaicas, tal como eram ensinadas no Velho Testamento, eram essencialmente um prenúncio de uma realidade futura, agora concretizada no Senhor Jesus Cristo”.15
G. K. Beale, presbiteriano
“A falsa ‘filosofia’ judaico-helenística (2.8) concentra-se na obediência a regras sobre ‘comida ou bebida, dias de festa, ou de lua nova, ou de sábados’ (2.16). … Esse linguajar é sem dúvida judaico, e não pagão. … É idolatria substituir Cristo pelas ‘sombras’… Além disso, das quatro ocorrências da fórmula tripartite ‘festas, luas novas e sábados’ encontrada no Velho Testamento, duas indicam que essas celebrações haviam se tornado idolátricas (veja Is 1.13,14…; cf. Os 2.11 no contexto de 2.6-13).
“Assim, já há um precedente para a transformação das festas do Velho Testamento em atividades idolátricas. Em Gálatas 4.8-10, a frase quase idêntica (‘guardais dias, meses, tempos e anos’), combinada com a palavra ‘elementos’ (cf. Cl 2.20), está diretamente ligada a objetos de idolatria. O fato de Colossenses 2.16-23 descrever tradições idolátricas também está sugerido em 3.3-7, em que pelo menos parte da antiga vida de incredulidade dos santos é resumida pelo termo ‘idolatria’.”16
Ellen White, adventista
“O Novo Testamento não repete a lei do dízimo como também não repete a lei do sábado, pois a pressuposição é que as duas são válidas.”17
A própria Ellen White admite que o Novo Testamento não ensina a lei do sábado. Ela simplesmente pressupõe que a lei seja válida. Mas essa pressuposição cai por terra, quando examinamos várias passagens do Novo Testamento, inclusive as citadas mais abaixo.
Alegações adventistas
Conforme vimos acima, Colossenses 2.16-17 que diz que o sábado e as leis alimentares dos judeus eram “sombra” da realidade, que é Jesus Cristo. Em outras palavras, com a chegada da realidade acabaram-se as exigências da guarda do sábado e da observância de normas alimentares.
Então, diante dessa afirmação que coloca em xeque a própria existência da religião adventista do sétimo dia, seus defensores costumam apresentar as seguintes justificativas.
Referência a outros dias
No caso específico dos “sábados”, muitos adventistas se defendem, afirmando que Paulo não está falando do sétimo dia da semana, mas dos vários sábados cerimoniais dos judeus, isto é, das festas. Mas é impossível aceitar esse argumento porque:
- As “festas” já apareceram no início da expressão “dia de festa, ou lua nova, ou sábados”. Caso se aceite o argumento dos adventistas, a tradução teria de ser “dia de festa, ou lua nova, ou dia de festa“, o que absolutamente não faz sentido.
- Conforme visto acima, no item “Dia de festa, ou lua nova, ou sábados“, a palavra fazia parte de uma expressão comum em hebraico para designar o sétimo dia da semana.
- A palavra “sábado” não se refere às festas judaicas em nenhuma das outras 67 vezes em que ela aparece no Novo Testamento.
- Na língua grega, a língua do Novo Testamento, o plural “sábados” é um hebraísmo, isto é, uma palavra que era usada de certo jeito por influência do hebraico. Apesar de gramaticalmente ser plural, podia ter sentido singular, como acontece em Mateus 28.1, que literalmente diz “no findar dos sábados”! Aliás, isso também se vê na tradução do Velho Testamento do hebraico para o grego, uma tradução feita cerca de 250 anos antes de Cristo. No caso de Êxodo 20.8, em grego é, literalmente, “lembra-te do dia dos sábados, para o santificar”! A forma da palavra era plural, mas o sentido era singular.
Ensino de uma heresia em Colossos
Outros adventistas preferem alegar que os “sábados” mencionados em Colossenses 2 não tinham bem relação com judaísmo, mas eram ensino de uma heresia que também pregava o culto dos anjos e o ascetismo (Colossenses 2.18, 23).
Mas alguns temas abordados em Colossenses 2.8-23 reforçam que o apóstolo Paulo está falando de um grupo que queria impor as práticas dos judeus. Além da referência a sábados, algo tipicamente judaico, os seguintes temas também apontam para uma heresia de origem judaica:
- A “tradição” (v. 8), que era um importante elemento do judaísmo e contra a qual Jesus lutou (Mateus 15.3, 6; Marcos 7. 3, 13). Essa “tradição” eram os “preceitos e doutrinas dos homens” (v. 22).
- O tema da circuncisão (v. 11, 13).
Sobre o “culto dos anjos“, veja o item acima com esse mesmo título.
Sobre a questão do ascetismo, basta lembrar que havia grupos judeus que praticavam o ascetismo, como era o caso dos essênios.
Um caso de paralelismo invertido
O livro Tratado de teologia adventista do sétimo dia até que tenta explicar os “sábados” na expressão “dia de festas, lua nova ou sábados”: “É também possível que Paulo estivesse usando um dispositivo literário comum de paralelismo invertido, partindo das festas anuais para as mensais e depois retornando às festas anuais”. Em outras palavras, a expressão “dia de festas, lua nova ou sábados” seria explicada como “paralelismo invertido”.18 Para entender por que essa alegação não tem pé nem cabeça, primeiro precisamos ver o que é paralelismo invertido.
Também chamado de quiasmo, o paralelismo invertido é um recurso literário usado com relativa frequência no Antigo Testamento. Um exemplo é Salmos 19.1. Por questão de clareza, a maioria das traduções em português diz algo assim: “Os céus proclamam a glória de Deus, e o firmamento anuncia as obras das suas mãos.” Mas no original hebraico o autor escreve a segunda frase da seguinte maneira: “e as obras de suas mãos anuncia o firmamento”, ou seja, o sujeito e objeto direto trocam de posição:19
A Os céus
B proclamam
C a glória de Deus,
C’ e as obras de suas mãos
B’ anuncia
A’ o firmamento.
Repare a correspondência de A com A’ (“céus” e “firmamento”, que são sinônimos), de B com B’ (mais dois sinônimos: os verbos “proclamar” e “anunciar”) e de C com C’ (“a glória de Deus” e “as obras de suas mãos”).
No paralelismo invertido o objetivo é sempre chamar a atenção para o elemento central. No nosso exemplo o elemento central é C/C’, a saber, a glória de Deus revelada nas obras de suas mãos, isto é, na criação. Repare que o salmista não está chamando a atenção nem para o céu/firmamento nem para o ato de proclamar/anunciar, mas para a glória de Deus revelada na criação. A ênfase é, portanto, a glória de Deus vista na criação. É assim que o paralelismo invertido funciona.
É aí que a coisa emperra para os adventistas que alegam que, quando usou a expressão “dia de festas, lua nova ou sábados”, Paulo teria feito uso do “paralelismo invertido”. De acordo com essa lógica, Paulo estaria dizendo: “dia de festa, lua nova ou sábados [de festa]”. De acordo com o teólogo adventista Ron du Preez os “dias de festa” tratam das festas da Páscoa, do Pentecostes e dos Tabernáculos, os “sábados” dizem respeito às celebrações das Trombetas, da Expiação e dos Anos Sabáticos.20
A dia de festa
B ou lua nova
A’ ou sábados [de festa]
Mas temos pelo menos três problemas com essa explicação:
- Os judeus não faziam diferença entre dia de festa e sábados de festa, tanto é que em Levítico 23, que trata de todas as festas e celebrações estabelecidas por Deus, elas aparecem misturadas. Elas ocorrem na seguinte ordem: Páscoa (Levítico 23.4-8), Primícias (23.9-14), Pentecostes (23.15-22), Trombetas (23.23-25), Expiação (23.26-32) e Tabernáculos (23.33-43). E os chamados Anos Sabáticos nem aparecem na relação de festas, mas só mais adiante, em Levítico 25.
- O paralelismo invertido sempre destaca o elemento central e sempre há algum motivo para isso. Na hipótese adventista o elemento central seria “lua nova”. Mas em Colossenses 2.16-17 não se nota nenhuma razão para destacar esse suposto “elemento central”. A frase seguinte é esclarecedora: “porque tudo isso tem sido sombra das coisas que haviam de vir”. A expressão “tudo isso” coloca todos os itens em pé de igualdade; nenhum é destacado.
- Um verdadeiro paralelismo invertido abrangeria a lista inteira de Colossenses 2.16 e não apenas a segunda parte. Um paralelismo invertido autêntico seria:
A comida
B dia de festa
C lua nova
B’ sábados [de festa]
A’ bebida
Neste caso o assunto de A e A’ seria alimentação; o de B e B’ seria festas; e o de C seria lua nova.
Mais passagens sobre o fim do sábado e de regras alimentares
Marcos 7.19
“E, assim, [Jesus] considerou puros todos os alimentos.”
Gálatas 4.10-11
“10Guardais dias, e meses, e tempos, e anos. 11Receio de vós tenha eu trabalhado em vão para convosco.”
Nessa passagem Paulo condena os judaizantes da Galácia, que estavam querendo obrigar os crentes dali a guardarem “dias, e meses, e tempos, e anos”. Os “dias”, os “meses” e os “anos” eram referência às celebrações do sábado, da lua nova e das festas anuais. A palavra “tempos” (também traduzida por “estações”) se referia às festas de mais de um dia de duração.
Como os cristãos gálatas estavam aceitando a guarda de “dias, e meses, e tempos, e anos”, isto é, inclusive o sábado, o apóstolo comenta seu receio de que “tenha … trabalhado em vão”, em outras palavras, sua preocupação de ter perdido tempo preando o evangelho a eles.
Romanos 14.1-6
“1Acolhei ao que é débil na fé, não, porém, para discutir opiniões. 2Um crê que de tudo pode comer, mas o débil come legumes; 3quem come não despreze o que não come; e o que não come não julgue o que come, porque Deus o acolheu. 4Quem és tu que julgas o servo alheio? Para o seu próprio senhor está em pé ou cai; mas estará em pé, porque o Senhor é poderoso para o suster. 5Um faz diferença entre dia e dia; outro julga iguais todos os dias. Cada um tenha opinião bem definida em sua própria mente. 6Quem distingue entre dia e dia para o Senhor o faz; e quem come para o Senhor come, porque dá graças a Deus; e quem não come para o Senhor não come e dá graças a Deus.
Aqui Paulo ataca os dois problemas: vegetarianismo e a guarda de certos dias.
O débil na fé é o vegetariano, aquele que só come legumes. Paulo não condena esse crente, mas diz que ele não deve julgar quem come carne. O vegetariano tem o direito de ser vegetariano, mas não pode exigir ou querer que os outros também sejam.
Quanto à guarda de dias, Paulo não usa a palavra “sábado”, mas está se referindo ao sétimo dia. É que havia um bom número de judeus na igreja em Roma. E guardar o sábado fazia parte da cultura daqueles judeus. Desde criancinhas estavam acostumados a isso.
Paulo não considera errado que guardassem o sábado, mas eles não podiam impor esse costume aos demais cristãos. As palavras do apóstolo são: “Um faz diferença entre dia e dia; outro julga iguais todos os dias. Cada um tenha opinião bem definida em sua própria mente.” Para sabia que alguns faziam diferença entre o sábado e os demais dias da semana e que outros consideravam que todos os dias eram iguais. Nesse detalhe não havia e não há certo nem errado. Apenas cada um deve ter convicção a respeito.
1Coríntios 10.25-31
“25Comei de tudo o que se vende no mercado, sem nada perguntardes por motivo de consciência; 26porque do Senhor é a terra e a sua plenitude. 27Se algum dentre os incrédulos vos convidar, e quiserdes ir, comei de tudo o que for posto diante de vós, sem nada perguntardes por motivo de consciência. 28Porém, se alguém vos disser: Isto é coisa sacrificada a ídolo, não comais, por causa daquele que vos advertiu e por causa da consciência; 29consciência, digo, não a tua propriamente, mas a do outro. Pois por que há de ser julgada a minha liberdade pela consciência alheia? 30Se eu participo com ações de graças, por que hei de ser vituperado por causa daquilo por que dou graças? 31Portanto, quer comais, quer bebais ou façais outra coisa qualquer, fazei tudo para a glória de Deus.”
O assunto é comer carne. Afinal, Paulo mencionou a questão de comida sacrificada a ídolo (v. 28). Duas orientações de Paulo:
- quando for comprar carne no mercado, não pergunte nada por razão de consciência; em outras palavras, o apóstolo não condena comer carne, nem mesmo a carne sacrificada a ídolo.
- você é livre para ir comer na casa de pessoas não crentes; se for, é bem provável que a pessoa ofereça carne; só não coma a carne se quem convidou alertar você de que ela é sacrificada a ídolo.
1Timóteo 4.1-4
“1Ora, o Espírito afirma expressamente que, nos últimos tempos, alguns apostatarão da fé, por obedecerem a espíritos enganadores e ensinos de demônios, 2pela hipocrisia dos que falam mentiras e que têm cauterizada a própria consciência, 3que proíbem o casamento e exigem abstinência de alimentos que Deus criou para serem recebidos, com ações de graças, pelos fiéis e por quantos conhecem plenamente a verdade; 4pois tudo que Deus criou é bom, e, recebido com ações de graças, nada é recusável.”
Aqui Paulo deixa claro que no final dos tempos apareceriam pessoas exigindo abstinência de alimentos, o nque é uma exigência errada porque “tudo que Deus criou é bom, e, recebido com ações de graças, nada é recusável (v. 4)”.
Atos 15.28-29
“28Pois pareceu bem ao Espírito Santo e a nós não vos impor maior encargo além destas coisas essenciais: 29que vos abstenhais das coisas sacrificadas a ídolos, bem como do sangue, da carne de animais sufocados e das relações sexuais ilícitas; destas coisas fareis bem se vos guardardes.”
Os principais líderes cristãos se reuniram em Jerusalém e chegaram à conclusão daquilo que consideravam comportamento cristão fundamental. É importante notar que nem abstinência de carne nem guarda do sábado foram considerados essenciais!
Conclusão
Colossenses 2.16-17 deixa claro que o cristão não está obrigado a guardar o sábado nem a seguir as leis alimentares dos judeus.21
Exigir isso é impor aos cristãos um fardo que ninguém consegue suportar. É mais do que isso: é tentar a Deus! Diz Atos 15:10:
“Agora, pois, por que tentais a Deus, pondo sobre a cerviz dos discípulos um jugo que nem nossos pais puderam suportar, nem nós?”
Para refletir
- Por que Colossenses 2.16 está, sim, falando do dia do sábado e não de festas judaicas?
- Como você refuta a alegação adventista de que os “sábados” de Colossenses 2.16 se referem a sábados cerimoniais e não ao dia de sábado?
- Como você refuta a alegação adventista de que Colossenses 2.16 se refere a uma heresia que estava circulando, mas não tem relação com o quarto mandamento (“Lembra-te do dia de sábado para o santificar”; Êxodo 20.8)?
- Dos versículos apresentados no final da postagem, qual é o mais forte contra o ensino adventista sobre a guarda do sábado? E sobre a abstinência de alimentos?
NOTAS |
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1. Na página Origem do site eu relato meu encontro e conversa com Gerhard Hasel. 2. Gerhard Hasel, “Sabbath”. In: Anchor Bible dictionary, organização de David Noel Freeman (New York: Doubleday, 1992), v. 5 , p. 852. Curiosamente Hasel não menciona a sequência mais comum: celebrações semanais–mensais–anuais. É o caso de 1Crônicas 23.31 (“nos sábados, nas Festas da Lua Nova e nas festas fixas”), 2Crônicas 2.4 (“nos sábados, nas Festas da Lua Nova e nas festividades do SENHOR”), 2Crônicas 8.13 (“nos sábados, nas Festas da Lua Nova, e nas festas fixas”), 2Crônicas 31.3 (“dos sábados, das Festas da Lua Nova e das festas fixas”) e Neemias 10.33 (“dos sábados e das Festas da Lua Nova e das festas fixas”). Essa é a ordem em Gálatas 4.10 (“dias, e meses, e tempos, e anos”), em que “tempos” indica as festas anuais que duravam mais de um dia e “anos” designa as celebrações anuais. 3. A versão Almeida Revista e Atualizada omite inexplicavelmente “nas festas”. Mas o texto hebraico traz baḥaggîm, que significa “nas festas”. As demais versões em português não trazem esse erro. 4. Aqui também a versão Almeida Revista e Atualizada traduz incorretamente o versículo, juntando “suas festas” e “suas luas novas”. A maioria das demais versões não tem esse erro. 5. James D. G. Dunn, The epistles to the Colossians and to Philemon: a commentary on the Greek text, The New International Greek Testament Commentary (Grand Rapids: Eerdmans; Carlisle: Paternoster, 1996), p. 173. 6. Clinton E Arnold. The Colossian syncretism (Tübingen: J. C. B. Mohr, 1995). 7. Clinton E. Arnold, “Colossians”. In: Romans to Philemon, Zondervan Illustrated Bible Backgrounds Commentary, vol. 4 (Grand Rapids: Zondervan, 2002). 8. John Calvin [João Calvino], Colossians, The Ultimate Bible Commentary (s.l.: s.n., s.d.), p. 141. 9. Ben Witherington III, The letters to Philemon, the Colossians, and the Ephesians: a socio-rhetorical commentary on the captivity Epistles (Grand Rapids: Eerdmans, 2007), p. 149. 10. Richard R. Melick Jr. Philippians, Colossians, Philemon, New American Commentary, vol. 32 (Nashville: B & H, 1991) p. 313. 11. James . D. G. Dunn, The Epistles to the Colossians and to Philemon, p. 173-174. 12. Horatius Bonar, The gospel in Colossians (n.p.: Titus Books, 2013), p. 19. 13. Marianne Meye Thompson, Colossians and Philemon, The Two Horizons New Testament Commentary (Grand Rapids: Eerdmans, 2005), p. 73-74. 14. Vários autores, Bíblia de Estudo Conselheira: Gálatas, Efésios, Filipenses e Colossenses (Barueri: Sociedade Bíblica do Brasil), p. 122. 15. Clinton E. Arnold, “Colossians”, p. 291. 16. G. K. Beale, “Colossians”. In: Commentary on the New Testament use of the Old Testament, organização de G. K. Beale e D. A. Carson (Grand Rapids: Baker Academic; Nottingham: Apollos, 2007), p. 1732 [tradução em português: G. K. Beale, “Colossenses”. In: Comentário do uso do Antigo Testamento no Novo Testamento (São Paulo: Vida Nova, 2014)]. 17. Original: “The New Testament does not reenact the law of the tithe, as it does not that of the Sabbath; for the validity of both is assumed.” (The Review and Herald, edição de 16 de maio de 1882.) 18. Kenneth A. Strand, “O sábado”. In: Tratado de teologia adventista do sétimo dia, organização de George W. Reid et. al. (Tatuí: Casa Publicadora Brasileira, 2011), p. 563. Veja também Alberto Timm, “Como interpretar os ‘sábados’ mencionados em Colossenses 2:16 e 17?” [disponível em https://centrowhite.unasp.br/perguntas/perguntas-e-respostas-biblicas/como-interpretar-os-sabados-mencionados-em-colossenses-2-16-e-17/, acesso em 01 nov. 2020]. 19. No hebraico a segunda frase traz o singular “a obra”, mas, para facilitar o entendimento do exemplo, coloquei no plural. 20. Ron du Preez, Judging the sabbath: discovering what can’t be found in Colossians 2:16 (Berrien Springs: Andrews University Press, 2008), p. 47-94. Citado por Alberto Timm, “Como interpretar os ‘sábados’ mencionados em Colossenses 2:16 e 17?”. 21. Para quem lê inglês, sugiro o artigo “The danger of clinging to the Law”, de Colleen Tinker [disponível em https://blog.lifeassuranceministries.org/2018/08/23/the-danger-of-clinging-to-the-law/; acesso em 23 out. 2020]. |